Cheirinho de bolo saindo do forno ou aquele feijão com “tempero de mãe". São muitas as receitas que nos transportam para sentimentos e pessoas que guardamos na memória.
Se antes, as relíquias gastronômicas eram guardadas em cadernos, agora, ocupam intermináveis páginas da internet. Mas ainda assim, contam muitas histórias.
Pode parecer pretensioso afirmar, mas talvez a “xícara” seja o medidor comum da cozinha brasileira. Ou costumava ser. Afinal, quase todas as receitas antigas utilizavam o utensílio para indicar a proporção dos ingredientes: “1 xícara de açúcar, 3 de farinha de trigo e 1 de óleo”, assim sugere-se começar um bolo de cenoura. Pudera, os cadernos de receitas tinham de ser práticos, para serem passados adiante e compartilhados com qualquer pessoa interessada em reproduzir as bolachas, tortas ou salgados servidos de lanche. E assim funcionava: bastava pedir como se fazia e prontamente alguém rabiscava a fórmula em um pedaço de papel — para mais tarde ser passado a limpo.
Mas as anotações sempre fizeram mais do que registrar ingredientes e modos de preparo, garante a jornalista paulistana Mariana Weber. A testadora de receitas de família, como ela mesma diz, se dedica a buscar os sabores das mesas alheias. Pesquisa, cozinha e replica a comida da casa dos outros. Uma verdadeira gourmand, no bom sentido da palavra, pois ama a boa refeição, cheia de pratos apetitosos. “Essas anotações contam narrativas das pessoas que as escreveram, histórias de épocas que passaram”, explica Mariana. “E rever as receitas também é pensar sobre essas pessoas e épocas”. Por isso, ela entende que afeto e comida são indissociáveis.

O assunto rendeu tanto que a jornalista decidiu criar o site O Caderno de Receitas, em 2014, onde publica os resultados de seu trabalho. São centenas de sugestões de doces, salgados, pratos quentes e frios, de panela, de forno e geladeira. Ela conta que ao revisitar os cadernos da mãe e da avó, reviveu as memórias de infância, redescobrindo paladares e vivências não descritos nas páginas amareladas. Mas aos poucos, os livretos deixam de ocupar as gavetas da cozinha e cada vez mais a escrita manual se cristaliza em registros obsoletos, reservados à palidez da lembrança. “Ao longo do tempo, mais receitas de famílias deixarão de ser feitas, mas isso sempre aconteceu. Penso que o desuso dos cadernos se relaciona, sobretudo, com nossos novos hábitos alimentares, nos fazendo cozinhar menos em casa, não como antigamente”.
Há quem ainda busca entre folhas escritas à mão quando precisa lembrar de uma receita. Ou simplesmente os guarda com esmero, pois se incorporaram à identidade de alguém que se dedicou a anotar pacientemente em letras cursivas as quantidades, produtos e métodos de cocção. Dona Liria Angela Simioni é uma dessas pessoas. A aposentada de 66 anos nos recebeu na cozinha de casa, onde passamos a tarde relembrando alguns causos enquanto nos mostrava seus sete cadernos de receitas, escritos por ela, pelas As anotações somam mais de 100 anos de histórias gastronômicas, remontando quatro gerações diferentes. Para acompanhar a conversa, dona Liria preparou couve-flor gratinada prato presente em um dos caderninhos, cujas anotações ensinam até como fazer “açúcar de cana”, o açúcar mascavo. “Nós trocávamos muitas receitas antigamente, porque não havia outra maneira de guardar”.
Apesar de ter uma pequena “enciclopédia da cozinha”, ela conta que hoje não usa as anotações com tanta frequência. As preparações mais comuns, do dia a dia, estão praticamente gravadas na memória.
Usa os cadernos, sim, quando decide fazer um prato menos convencional. Por outro lado, não se desfaz de nenhum registro, nem sequer das folhas soltas entre as páginas. “Algumas estão em papeizinhos porque são manuscritos de amigas. E não quero transcrever, porque assim tenho uma lembrança de quem passou para mim”, explica dona Liria, que tem uma fotocópia do livro de sua avó, hoje com 101 anos de idade. É sua maneira de recordar não somente os sabores, mas experiências vividas, como se pudesse materializar o passado. “Também guardei o caderninho da minha mãe, está bem surradinho”, relata com emoção, “e porque tem a letra dela. Isso me traz muitas memórias dos lugares e gestos na hora de cozinhar”.
"Rever as receitas também é pensar sobre essas pessoas e épocas" - Mariana Weber
Cozinheira de mão cheia, costuma preparar o almoço de toda a família — algo que a realiza e preenche de carinho. Inclusive, várias receitas das refeições vieram dos programas de culinária na televisão, como o antigo.
Note e Anote, apresentado por Ana Maria Braga, na Rede Record. Até poucos anos atrás, ela costumava acompanhar mais a programação da TV. Agora, tem usado as redes sociais para encontrar novos pratos. “Muitas novidades acho na internet e no próprio Facebook. O que mais tem é gente ensinando como preparar as receitas”, assegura dona Liria, enquanto tira a travessa do forno. No entanto, mesmo com as facilidades da web, ela afirma que seus cadernos têm um ingrediente singular: a recordação. E já sentados à mesa, tivemos de interromper a agradável conversa para comer, antes que a comida esfriasse nos pratos. Afinal, como diz o ditado: grande prazer, não escusa o comer.
Dizem que começamos a comer com os olhos. É só rolar pelo feed das redes sociais para surgir um vídeo com o passo a passo de uma receita. Mesmo que não preparemos o prato, certamente paramos alguns segundos para apreciar a comida, ainda que visualmente — basta digitar o termo #foodporn para ser bombardeado de fotos que certamente o farão salivar. Se antes as receitas eram passadas manualmente, de pessoa a pessoa, hoje, qualquer preparo está disponível na rede. Qualquer mesmo! Da cozinha francesa à asiática e italiana, são inúmeros os sites e blogs espalhados pelo mundo. O que também não falta são programas de TV, plataformas de streaming e canais do YouTube dedicados à culinária. O consumo desses conteúdos é tamanho, que em um ano (de setembro de 2019 a setembro de 2020) os programas e reality shows deste ramo cresceram 36% na grade de televisão, segundo o Ibope. Somente o catálogo da Netflix no Brasil conta atualmente com 40 séries e seriados sobre o assunto.
Para o chef chapecoense Talison Bortoli, de 29 anos, a gastronomia se tornou mais popular justamente pelos reality shows. Além de acompanhar esses programas, ele explica que um dos fatores cativantes, responsável pela grande audiência, é a identificação e o afeto dos participantes em relação ao preparo dos alimentos, especialmente quando são amadores. A propósito, a cozinha é o ambiente central das casas, capaz de reunir as pessoas, como diz a também chef Paola Carosella, jurada do MasterChef Brasil, um dos programas que Talison acompanha.
Na casa dele não há cadernos de receita. Até porque, na sua família poucas pessoas cozinhavam. E quando iam para a cozinha, as preparações cotidianas eram simples. Talison conta que sua paixão pela culinária surgiu cedo, ainda na adolescência. Certo dia, por pura teimosia, como ele recorda, decidiu replicar o molho de tomate preparado pela mãe, só para provar que conseguia, e assim tomou gosto pelo avental. Anos depois, ingressou na faculdade de Gastronomia, em Salvador, e desde então não parou de usar as panelas. Dos oito anos até a juventude, morou na Bahia. As idas e vindas da profissão no litoral nordestino, pois trabalhava somente durante as temporadas, o fizeram voltar a Chapecó. De lá, trouxe muita bagagem e depois de várias experiências em grandes restaurantes, resolveu abrir seu próprio negócio. Ao lado da esposa, Mônica, tem uma empresa de buffet para eventos.
Enquanto preparava um balotine de frango com batata rosti e redução de acerola, Talison nos contava que, para ele, os canais e programas de culinária, além de entretenimento, são grandes referenciais para o seu trabalho. Outro fenômeno interessante, como lembra o chef, é a simplicidade para acessar livros na internet. “Mesmo quem não trabalha na área, consegue fazer download de publicações das grandes escolas de gastronomia do mundo, como a Le Cordon Bleu”, explica referindo-se à famosa escola parisiense. “Desse modo, qualquer pessoa pode praticar em casa o que é estudado por até cinco anos em uma rede profissional”, o que também justifica o aumento de pessoas interessadas pela cozinha.

À espera de Talison finalizar o prato de balotine, conversávamos sobre suas experiências e como as redes sociais têm grande impacto nesse cenário, substituindo as páginas dos livros e cadernos por telas do celular, da TV e do computador. Basta procurar uma hashtag e centenas de resultados aparecem. Até a televisão tem sido esquecida pelos brasileiros, como aponta uma pesquisa encomendada pelo Google. De acordo com os dados, o consumo de vídeos pela internet cresceu 165% no Brasil, desde 2014.
Isso fica evidente com a quantidade de canais no YouTube dedicados especificamente à cozinha. Sejam profissionais ou amadores, os criadores de conteúdo para a internet atraem milhões de seguidores, como no caso dos canais Tata Pereira (com 6,4 milhões de inscritos), Menino Prendado (com 4,4 milhões), Ana Maria Brogui (com 3,5 milhões) e Danielle Noce (com 2,9 milhões).
O paranaense morou boa parte da vida em Fraiburgo, no meio-oeste do Estado, e se mudou para Chapecó em 2009. Veio para cá pois o amor falou mais alto e, desde então, divide a vida e as panelas com Fernanda, sua companheira (uma excepcional cozinheira, segundo ele). Ambos se arriscam diariamente em frente ao fogão e se inspiram muito em canais do YouTube. Além de terem feito alguns workshops de gastronomia — aprendendo, inclusive, técnicas para aperfeiçoar o interesse de Anderson pela churrasqueira —, o casal também assiste a vários programas de TV sobre o tema. Em especial o Tempero de Família, apresentado pelo ator Rodrigo Hilbert, no canal GNT. “A tarde de sábado é nosso horário sagrado!”, brinca ele, embora admita que o apresentador é praticamente venerado pelo grupo de amigos. “Outro programa que adoramos é o Cozinha Prática, da Rita Lobo. Várias receitas que preparamos surgem daí”.
Depois de uma (não tão) breve conversa, Anderson aprontou a churrasqueira e começou a preparar o sanduíche de filé mignon assado com salada coleslaw — prato escolhido para a noite. Entre algumas taças de vinho, nos contou a origem de seu amor pela culinária. Desde jovem, era ele quem assava a carne aos domingos. “Para mim, fazer churrasco envolve a reunião em família. Porque é uma refeição preparada ao longo da semana, pensada para ser compartilhada”. Mas o gosto pela “brasa” aumentou após as viagens que fez ao Uruguai, Chile e à Argentina, quando conheceu outras técnicas de churrasco, como a parrilla (um sistema de grelhas móveis).
"Cozinhar para alguém é um ato de amor"- Anderson Puhl
Anderson não guarda cadernos em casa. Aliás, ele mesmo nunca teve. Prefere acessar a internet em busca de novas ideias. Afinal de contas, os vídeos e sites descrevem com detalhes os modos de preparo, de forma mais precisa que os próprios cadernos. Apesar disso, lembra com muito afeto das receitas da mãe. “Ela prepara doces e bolos memoráveis”, garante ele, ao lembrar dos pães caseiros da infância. “Nós tirávamos o pão quentinho do forno, ainda saindo fumaça, e comíamos na hora”. Os inúmeros registros, daqueles com as medidas indicadas em “xícaras”, ficam hoje somente na memória de Anderson. Sua avó materna, outra exímia cozinheira, afirma ele, se criou na roça, a única mulher entre nove irmãos. Por ser mais velha que os demais, se dedicava ao preparo das refeições da família. Mais tarde, dos filhos e, muito tempo depois, dos netos. “Ela, sim, tinha vários cadernos, todos manchados pelo tempo”. Por sinal, guardados na gaveta de um armário, chamado por Anderson de “santuário de receitas”.
Recentemente, teve a oportunidade de visitar os pais na cidade natal e a felicidade de preparar um prato para eles. “Queria relembrar os momentos que tivemos na infância, quando minha mãe fazia a comida para nós. Só que desta vez, eu é quem estava cuidando de tudo. Cozinhar para alguém é um ato de amor e eu queria transmitir isso para eles”, conta emocionado. O carinho e respeito pela comida é tanta entre o casal, que eles decidiram emoldurar receitas de suas mães em quadrinhos pendurados na parede da cozinha. Um gesto modesto para preservar a ancestralidade e as memórias que, de muitas maneiras, os conectam. De repente, a mesa da sala de jantar estava posta. O tempo passou rápido e a carne já estava assada, o pão tostado e a salada temperada. Uma outra garrafa de vinho foi aberta e alguém, de longe, gritou carinhosamente: “vem, que tá na mesa!”.
*Matéria escrita em parceria com o jornalista Taulan Cesco
Carol Bonamigo
Jornalista, especialista em Cinema e Realização Audiovisual, Diretora de Jornalismo e sócia da revista Flash Vip