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13/12/2022 especial

Vida entre telas

O celular é um dos grandes exemplos de como um simples aparelho pode armazenar toda a nossa vida. Mas como dosar quando o uso se torna excessivo e até mesmo nocivo?

A evolução constante da tecnologia é fascinante e, com isso, diversos dispositivos e funções são criados para tornar a nossa rotina mais prática. O celular é um dos grandes exemplos de como um simples aparelho pode armazenar toda a nossa vida. Mas como dosar quando o uso se torna excessivo e até mesmo nocivo? Ou ainda, é possível se imaginar sem ele?

O pessoal anterior à Geração Z (aqueles que nasceram até 1995) lembra dos primeiros aparelhos de celular ao qual tiveram acesso como ele realmente se vendia: apenas um telefone móvel. Mensagens de SMS – se tivesse crédito –, um toque para chamar a atenção de outra pessoa ou o famoso “jogo da cobrinha” eram suas principais funções no início dos anos 2000. Nem vamos voltar aos primórdios dessa tecnologia, quando o auge da evolução era simplesmente ligar para alguém de qualquer lugar.

Hoje, parece inconcebível pensar em fazer apenas isso com o celular. Tudo está na palma da mão. Trabalho, notícias, redes sociais, vídeos e fotografias, grupos de conversa, movimentação bancária, monitoramento de saúde e exercícios, música, livros, jogos e entretenimento. Apenas de pensar em ficar sem ele, já desperta preocupação e apreensão. Apesar de todas as facilidades que este aparelho irresistível nos proporciona, ele também pode gerar dependência.

A nomofobia (do inglês no mobile phobia) é o nome dado a um transtorno caracterizado pelo medo, ansiedade e angústia excessivos causados pela incapacidade de ficar sem celular. Conforme explica a médica psiquiatra Juliana Perizzolo, a nomofobia já está descrita no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), na relação dos distúrbios relacionados ao uso de tecnologia, mas não pode ser vista de maneira isolada. “A dependência do celular se relaciona com as dependências de jogos eletrônicos e redes sociais, por exemplo, e tudo que condiz a esse aparelho. Mas também está associada a outras patologias clínicas, como depressão, transtorno de ansiedade e ansiedade social – a antiga fobia social. Ainda não está estabelecido o diagnóstico e, assim como qualquer dependência, a pessoa com nomofobia não se dá conta que está sendo prejudicada ou prejudicando outros”, afirma a especialista em Psicoterapia.

A questão é como perceber que o uso do smartphone se tornou abusivo e prejudicial. “O uso nocivo pode ser através de um prejuízo social, como estar em um encontro ou uma festa e ter que checar o celular o tempo todo, mesmo sem necessidade; ou atrapalhar o trabalho ou estudos por não conseguir se desprender; ou ainda pior, causar um acidente de trânsito pela distração com o aparelho”, alerta Juliana.

Um relatório lançado pela empresa de análise de mercado digital App Annie revelou que o Brasil, ao lado da Indonésia, detém o maior volume de uso de celulares entre os 17 países observados no levantamento. Os brasileiros passam, em média, cinco horas e meia ligados ao aparelho diariamente, o que significa – se considerarmos as oito horas de sono – um terço do dia gasto apenas no dispositivo. Uma outra pesquisa, realizada pela consultoria global Digital Turbine, também revelou a incapacidade dos brasileiros de se privarem dos seus smartphones, onde 39% dizem não conseguir ficar longe dele por mais de uma hora e 20% não suportam sequer 30 minutos sem sua presença.

“O celular hoje é multifuncional e uma tecnologia muito boa, que facilita barbaramente o nosso trabalho, não podemos esquecer disso. Ele é quase como uma extensão nossa. É muito forte dizer isso! Os pacientes com nomofobia ficam ansiosos, irritados ou tristes quando estão longe do celular. Esses são comportamentos típicos das dependências químicas também. E esse exagero causa um prejuízo físico, social e psicológico”, opina a médica.


URGÊNCIA E REGISTRO

Antes, pagávamos pelas mensagens enviadas, agora fazemos de forma gratuita por aplicativo, contanto que tenhamos acesso à internet. A facilidade em conversarmos pelo celular e a segurança com o registro das informações, contribuiu para a comunicação pelos aparelhos tornar-se essencial e, em alguns casos, absoluta. É o que mais motiva o uso do smartphone para o arquiteto Anderson Kech. Assim como comparado por Juliana, ele considera seu celular uma extensão física e psicológica de si mesmo. “Minha comunicação com as pessoas do meu cotidiano acontece mais pelo aparelho do que pessoalmente. A maioria dos meus amigos e familiares não mora em Chapecó, então conversamos principalmente pelo WhatsApp. Mas no trabalho também é assim, e não apenas pelo hábito, mas porque preciso registrar dados e informações. Mesmo que converse com alguém e tome uma decisão, preciso retornar e enviar novamente pelo celular para registrar e validar. Então, acaba sendo melhor evitar a comunicação oral e manter tudo pelo celular”, conta Kech, que já percebe o déficit causado à sua memória pela conveniência das trocas catalogadas. “Com conversas presenciais, acabo esquecendo muito rápido o que foi dito. Acho que me atenho tanto à segurança da informação escrita, que não tenho que absorver mentalmente. E não é falta de interesse, mas uma dispersão psicológica”, avalia.

E nesta questão de manter as principais conversas pelo WhatsApp, há também uma perda nas relações, uma vez que sou responsável pelo que envio, não necessariamente por como aquela pessoa vai interpretar o que foi dito. A falta de entonação da voz, pausas nas falas e percepção da expressão desfavorece o entendimento da mensagem, ainda mais quando a versão “por escrito” vai repleta de abreviações e sem pontuações adequadas. Convenhamos, você já deve ter sido interpretado como grosseiro ou pensou isso de alguém, sem ter sido a intenção inicial. A saída, para Kech, é utilizar emojis para simular emoções ou, em alguns casos, recorrer aos áudios. Mas até esses ficam prejudicados com as funções de aceleração em 1.5x e 2x. “Já cheguei a comentar isso com a minha psicóloga, em como você retira a intenção da voz da pessoa quando escuta o áudio em 2x. E percebi que estava me tornando mais acelerado também em função da tecnologia exigir isso de mim. Estava ficando mais ansioso, com um pressentimento de urgência inexistente, de me deparar no mercado e querer correr na fila, sendo que não tinha compromisso depois. Uma pressa constante. E como as coisas são mais imediatas por causa do celular, também criamos uma sensação de imediatismo muito grande”, relata.

E esse sentimento de Kech não é em vão, tampouco afeta somente a ele. Mas não são apenas os aplicativos de mensagens que tomam o seu tempo, e relata estar em frente à tela desde o momento que abre os olhos. “É um hábito: acordo com o despertador do celular, abro duas redes sociais e um jogo. Por mais que não queira, é automático, quando vejo, já estou fazendo. E não é só quando acordo, é durante todo o dia. Um escape do tédio, que se torna quase um vício”. E como seria o seu dia se pegar o celular não fosse a primeira coisa que você fizesse ao acordar? “Nossa, penso que o início do meu dia seria completamente diferente e até mais produtivo. Talvez iria me espreguiçar, dar o tempo de realmente despertar, deixar os olhos se habituarem com a luminosidade e ir transitando entre o breu e a luz natural. Acho que até o organismo deve responder diferente de acordar assim, deixar os pensamentos em ordem e não ter a ansiedade de já ter mensagens para ler”.


O QUE OS OLHOS NÃO VEEM… A MENTE SE DESESPERA

Quantas vezes você não pensou “vou só dar uma olhadinha no que está acontecendo nas minhas redes sociais” e então duas horas se passaram? As redes sociais são responsáveis por 70% do tempo dispensado ao celular. Talvez até mais, no caso de Luana Zanandrea. A publicitária – que também é colunista social aqui da FV – é tão apegada ao seu aparelho que assume às vezes viver mais sua vida online que offline. “Tem muita gente que chama a minha atenção por isso. Meu namorado não dá mais bola, ele está acostumado que sou assim, mas outras pessoas comentam ‘sai do celular’, ‘participa’. Mas para mim, tudo está acontecendo ali e o que preciso está na palma da minha mão, então me acostumei com isso”, conta.

Mas nem sempre foi assim. Luana percebeu essa mudança na sua relação com o smartphone a partir de 2018, quando passou um tempo parada entre mudanças de emprego, e acabou se apegando às redes sociais. O passatempo se tornou uma função, a qual ela desempenha com muito prazer. “Gosto muito de trabalhar com as redes, receber produtos para testar e divulgar as marcas, então comecei a ficar cada vez mais engajada com o celular. Depois disso, meu novo emprego também passou a envolver lidar com os perfis da empresa e dos clientes. Então o lazer passa a ser o trabalho e o trabalho passa a ser o lazer”

Não conseguir deixar de visualizar as notificações parece também ser um dos motivos que não tiram o celular da mão de Luana. O medo de perder algum comentário ou informação se transforma em ansiedade e aflição em deixar alguém esperando pela sua resposta, que geralmente acontece de forma imediata. “Nunca deixo nenhuma notificação pendente. Sei que perco muito tempo com isso, extrapolo, então tirei esse recurso, se não é ainda pior. Quando tinha avisos na tela e em som, ficava ainda mais ansiosa. Não conseguia largar. Agora não tenho nada na tela, mas fico toda hora abrindo para ver o que chegou”.

E essa preocupação em não estar acessível não veio do nada. O momento que Luana deixou de manter seu celular no modo silencioso tem data precisa: 28 de novembro de 2016. “Não era tão apegada ao telefone, até o acidente da Chapecoense. Depois daquilo, nunca mais deixei meu celular longe ou sem algum tipo de toque ou função de vibrar, para me avisar se algo acontecer e alguém precisar falar comigo. Mas vejo que sou completamente dependente, e isso não é bom nem para minha saúde física, mental ou social. Até durmo com ele embaixo do meu travesseiro. Acho que o único momento que não mexo no celular é no banho. Quando ele for completamente à prova d’água, talvez nem isso vai acontecer, ele vai junto para baixo do chuveiro”.


A SUBJETIVIDADE DA COMUNICAÇÃO

O uso do celular, mais especificamente a chegada dos smartphones, marca o processo histórico em como nos relacionamos com a tecnologia. Conforme o psicólogo Anderson Schuck (não confunda com o Anderson Kech, também entrevistado nesta matéria), toda vez que pensamos em uma dependência tecnológica, como a nomofobia, é necessário perceber que todo modo de sofrimento tem ligação com determinado contexto e a forma como estabelecemos as nossas relações sociais. E, neste caso, relações sociais que passam a ser estabelecidas e mediadas pela tecnologia, um meio de conhecer sobre o mundo, fazer vínculos com pessoas e até mesmo conhecer mais sobre nós mesmos. “Tem todo um campo de oportunidades que a internet e o contato com as mídias nos colocou, que pouco a pouco essas relações foram inundando o nosso dia a dia. O que muitas vezes não percebemos é que, à medida que avançamos certas relações, conhecimentos e oportunidades, também avançamos uma questão de dependência, sofrimento e uma forma que, gradativamente, ao invés de nos relacionarmos com a internet, ela que começa a pautar o nosso dia a dia”, reflete Schuck, que também é especialista em Saúde Mental e Dependência Química e doutorando em Psicologia Social.

A forma que a internet dita a nossa vida nos mantém hiperconectados e o celular facilita essa situação. A enxurrada de informações que temos acesso a cada instante também traz certa cobrança que não podemos mais nos dar ao luxo do tempo ocioso. Se a informação está na palma da minha mão, por que não a estou acessando o tempo todo? “A todo momento do nosso dia a dia, parece que se não estamos mexendo na internet e nas redes sociais, estamos em dívida com algo. Neste ponto, a inundação de informação interfere não apenas nas nossas conexões sociais e de lazer, mas nas nossas relações de trabalho. Com a pandemia, se intensificou cada vez mais a ideia de que estamos trabalhando a todo momento. Que a qualquer instante alguém pode nos chamar e que estamos disponíveis o tempo todo para receber ou prestar informações. E isso tem como consequência deixar as pessoas cada vez mais nervosas, irritadas e ansiosas, porque estão sempre esperando uma determinada demanda que se coloca dessas relações”, analisa Schuck.

Uma boa pergunta a ser feita é: a quem interessa que estejamos sempre disponíveis? Ou ainda, quem está lucrando com esse uso excessivo dos aparelhos? “Não podemos só depositar a responsabilidade a uma pessoa ou uma instituição, porque está em todos os lugares e todos os indivíduos. Como você vai separar o que é a sua vida privada se o seu trabalho está indo com você para todo lugar e até dentro de casa?”, indaga o psicólogo.

O fato é que hoje não tem mais como pensar a nossa vida sem o celular. Ainda mais quando falamos dos nativos digitais, que é uma geração cuja vivência já foi toda inserida neste contexto. Neste sentido, o problema não é o instrumento, mas a maneira que nos relacionamos com ele. “Quando falamos em crianças e os pais permitiram o acesso ao celular, isso por si só não é um problema. Mas quando se usa esse celular para acalmar uma criança e ela só consegue se tranquilizar com isso, aí há um empecilho. Que outras oportunidades são dadas a essa criança para ela construir o mundo dela, que não apenas mediada pela tecnologia?”, provoca Schuck e lança outro questionamento, dessa vez aos adultos: “Qual a capacidade de lidar quando a situação exige a sua presença física, que você não esteja com o celular? Como você vai ficar? O que estamos deixando de viver e experienciar, à medida que somos colonizados pela internet e que ela começa a organizar o nosso dia a dia? Basicamente, estamos consumindo o que nos consome”.

E você, durante a leitura dessa matéria, quantas vezes pegou seu celular? Ou a leu diretamente da tela do seu smartphone? Eu mesma confesso ter demorado mais que o previsto para terminar de escrevê-la, e garanto: meu celular teve muito a ver com isso.


AUTORA

Carol Bonamigo

Jornalista, especialista em Cinema e Realização Audiovisual, Diretora de Jornalismo e sócia da revista Flash Vip
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