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13/10/2025 especial

Crescer não tem Ctrl + Z

Sem manual, a geração Y lida com cobranças internas, frustrações e a necessidade de se reinventar enquanto enfrenta desafios financeiros e emocionais típicos da meia-idade.

Por Deisiana Damarat

Os millennials, também chamados de geração Y, nascidos entre 1982 e 1996, cresceram com fitas VHS, internet discada e figurinhas da Copa, e acreditavam que casa própria, carro e emprego fixo seriam etapas naturais da vida adulta. Hoje, muitos chegam aos 40 com a sensação de que o roteiro prometido não se cumpriu.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a proporção de domicílios próprios diminuiu, e a estabilidade deu lugar a contratos temporários, trabalhos híbridos e múltiplas fontes de renda.

Quem cresceu juntando Tazos, hoje paga streaming, faz Pix em vez de cheque e divide apartamento alugado, mostrando como a infância analógica contrasta com uma vida adulta digital, onde sucesso se mede em conquistas voláteis e curtidas.

Quando o sucesso não basta

Aos 40 anos, muitos millennials sentem exaustão, ansiedade e burnout. Casa própria, carro e estabilidade profissional nem sempre aparecem, e psicólogos notam aumento na procura por terapia e apoio medicamentoso.

“Muitos millennials buscam tratamento pessoal, psicoterapia e suporte medicamentoso, embora o tabu em procurar ajuda ainda exista”, diz a psicóloga Fernanda Patricia Moratelli Lavall. Ela observa que essa geração cresceu com valores analógicos, esperanças digitais e uma vontade constante de superação, que geram estresse e ansiedade.

Nesse contexto, a psiquiatra Rafaela Pavan complementa que a sobrecarga de trabalho, objetivos e desejos tomou conta da rotina. “As recompensas financeiras diminuíram e o cansaço aumentou. Ao mesmo tempo, essa geração começou a buscar autoconhecimento e reduziu preconceitos com a saúde mental. Percebeu-se que o cérebro é um órgão muito nobre para ser ignorado quando adoece... mesmo que, por vezes, tarde demais”, avalia a médica.

Fernanda reforça que a pressão por desempenho ainda é grande: “Cresceram com incentivo para estudar, conquistar sucesso e estabilidade. Essa busca pelo alto desempenho  gera a sensação de nunca estar fazendo o suficiente”. E Rafa ela acrescenta que “a meritocracia tem muitas distorções e discrepâncias. A performance vai ser desigual como conse quência. Empenho é diferente de mérito. E, por vezes, essa diferença da base torna o processo adoecedor”.

A cobrança constante reflete diretamente no corpo e na mente. “Indivíduos se autojulgam, se cobram, não fazem pausas. Chega um momento em que o corpo exige descanso”, explica Fernanda. Rafaela lembra que “a geração ‘Xou da Xuxa’ aprendeu que a realidade é diferente do sonho. Comparações, desejos inalcançáveis e cobrança pelo cargo mais que pelos valores prejudicam a saúde mental”.

Pressão externa e interna

Além do olhar voltado para fora, medindo conquistas e fracassos em relação ao outro, há também um tribunal interno que reforça a sensação de insuficiência. “Em alguns casos, a pressão interna impacta mais, pois decorre da história de vida e valores”, diz Lavall, e Pavan completa que ambas se manifestam: o mundo externo na comparação com o sucesso alheio e o interno, que vem da história de vida. “Cada falha nos leva a tentar não errar de novo, mas quando não enxergamos que determinação e persistência são exigências do processo, tudo parece distante. O ideal e o alcançável são complementares, não opostos”.

Mesmo quem alcançou estabilidade sente inadequação. “O balde de satisfação nunca está cheio. Não basta diploma ou carreira consolidada, é preciso refletir sobre o real significado do trabalho e escolhas de vida”, observa Lavall.

Pavan aponta que a autocobrança é exagerada, há insatisfação mesmo com conquistas e medo do futuro, sempre com sensação de dívida com o inalcançável. “Brinco que os 40 são os novos 20. Existe potencial de dar novo sentido à vida, mas também novas crises. Chegar aos 40 sem planos claros ficou mais frequente. Fomos a geração empurrada a decidir o futuro num vestibular sem maturidade para escolher o sabor de sorvete que queríamos, e de repente nos via sem sentido nas escolhas”, conclui a psiquiatra.

Exaustão constante

O celular vibra na madrugada, o grupo do trabalho apita no churrasco e o computador fica aberto após o expediente. Para os millennials, que cresceram com internet discada e hoje estão conectados 24 horas, a vida parece não ter botão de desligar. O que antes era “dar conta de tudo” agora tem nome: Síndrome de Burnout, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2022.
Paula Sian, médica dermatologista e autora de Um Burnout para chamar de seu, afirma que esta é uma doença de perfeccionistas agradadores, que fazem muito pelos outros, esquecem de si mesmos e ultrapassam todos os limites do autorrespeito. “Eu descobri sozinha, nutrindo vários relacionamentos abusivos: casamento, família e trabalho”.

O corpo alerta com exaustão e sensação de que tudo é mais importante que você. “O principal é você deixar de existir. Trabalho em especial. Você deixa de se cuidar, de se admirar no espelho. Até a higiene pessoal fica em segundo plano. Daí vêm sinais clássicos: insônia, pensamentos intrusivos, esquecimento, falta de memória”, relata.


A recuperação exige olhar para si, aprender a dizer não e resgatar pausas. “Fazer psicoterapia seria uma necessidade para todos os seres humanos. Vivemos numa fase de muito medo, os empregos não são mais estáveis e a ideia de ficar muito tempo numa mesma posição assusta essa geração”.

Paula descreve a pressão interna quase aprisionadora. “A insatisfação crônica é uma prisão, onde ficamos no automático, fazendo várias coisas ao mesmo tempo, sem parar para perguntar: o que eu realmente quero? Isso é possível?”.

Marcas de quem marcas de quem não desiste

Tiago Favretto, 37 anos, de Joaçaba/SC, começou como eletrotécnico de campo e sempre sonhou em viajar. “Procurei algo algo em minha vida que conseguisse unir meus sonhos com a carreira profissional e é o que faço hoje, obras pelo Brasil”. Com esforço, passou da parte braçal à gestão de projetos, mesmo sem muito estudo. “Graças a Deus minha força de vontade e dedicação sempre me colocaram onde eu imaginava estar um dia”, relata.

Abrir o próprio negócio trouxe tropeços: excesso de confiança, falta de conhecimento e relacionamentos que não deram certo. Hoje, concilia rotina intensa, cuidados com os pais e demandas do relacionamento. “Fico a desejar na atenção. Isso faz com que a demanda aumente juntamente com a pressão de estar juntos”. Ainda assim, mantém esperança: “Todo dia de amanhã pode ser melhor do que o de hoje... ter a mente sempre positiva, mas com os pés no chão ao lado de pessoas que querem ver você crescer”, reflete.

Entre estabilidade e paixão

Estevan Graboski Casanova, 37 anos, de Caxambu do Sul/SC, também precisou equilibrar sonhos e responsabilidades. Para ele, a vida pessoal sempre buscou estabilidade: emprego, relacionamento e tempo bem distribuído. “Algumas vezes senti que algo não estava dando certo, mas com persistência os obstáculos foram sendo superados”, diz o escritor, professor e diretor de teatro.

Hoje, ele organiza trabalho e arte, embora a gestão do tempo ainda seja um desafio. “A maior dificuldade é a capacidade de gerir o tempo... ainda tenho dificuldades para encaixar atividades de lazer no dia a dia”, conta. Como Tiago, Estevan precisou conciliar múltiplas demandas, mas encontrou um caminho para manter a essência. “Não se entregue tanto ao trabalho e sempre busque colocação onde o coração direciona”, aconselha.

Salto dos MEIS: uma das respostas à instabilidade tem sido o crescimento do empreendedorismo individual. o número de microempreendedores individuais (meis) subiu de 7,8 milhões em 2018 para 15,6 milhões no início de 2025, segundo a receita federal e o ibge. parte desse aumento reflete a saída de 1,7 milhão de pessoas do mercado formal em 2022, mostrando que o empreendedorismo muitas vezes surge por necessidade.

Reinvenção e propósito

Roberta Maria Galli, 35 anos, de Chapecó/SC, trilha outro caminho, trocando estabilidade por realização pessoal. “Foi então que decidi empreender”. Hoje é maquiadora e fotógrafa e se sente realizada. “Descobri talentos que nem sabia que tinha, conquistei minha independência e me reinventei”.

Como Tiago e Estevan, enfrentou obstáculos – pandemia, autossabotagem, comparação com outros profissionais – e precisou aprender a respeitar limites. “Comecei a reconhecer alguns sinais de exaustão e passei a me cobrar menos, respeitar meus limites e também passei a delegar algumas tarefas”.

A rotina intensa é compartilhada com os outros: lidar com múltiplas demandas, equilibrar vida pessoal e profissional e manter motivação. “Ver o olho da cliente brilhar ao se olhar no espelho, construir coisas que jamais imaginei, é um sentimento de que estou no caminho certo”, avalia. Seu conselho ecoa a mensagem de Tiago e Estevan: “Vai com calma. Nem tudo precisa acontecer agora. Confie no processo e aproveite a jornada – você está indo bem”.

Millennials e a conta do futuro

A geração que acreditava no estudo como passaporte para o sucesso descobriu que esse caminho perdeu valor. O diploma de graduação, que nos anos 1990 parecia sinônimo de estabilidade e ascensão, virou apenas mais uma linha no currículo.

O conhecimento continua importante. “Ele precisa ser estratégico. O conhecimento precisa ser reciclado”, observa Cássia Ternus, especialista em Economia e Finanças Comportamentais.

Do outro lado, olhando para os números, o professor de Economia e Finanças, Edivan Pommerening, aponta os vilões do roteiro: salários que não acompanham a inflação, crédito caro e custo de vida crescente. “Apesar do investimento em educação, as pessoas encontram salários que crescem pouco, custo de vida elevado e crédito caro, o que dificulta formar patrimônio”, resume.

Empregos instáveis e competição elevada geram frustração, agravada pela inflação acumulada de 70,1% entre 2012 e 2022 e pelo endividamento recorde: em julho de 2025, 78,5% das famílias brasileiras deviam, e 30% não conseguiam pagar.

O peso do bolso e do coração

A fase considerada mais produtiva da vida também virou a mais cara. Filhos, aluguel ou financiamento, plano de saúde, escola… a lista de boletos parece não ter fim. “Quem está nessa faixa etária está no auge da sua fase produtiva, conciliando – talvez – a maior receita gerada na vida com os maiores gastos: filhos, moradia, educação, saúde, alimentação”, explica Cássia.

O problema é que, junto com os compromissos, vem a tentação do crédito fácil. A economista alerta que a combinação deste crédito fácil e juros elevados cria terreno fértil para dívidas que começam pequenas e tomam proporções muito maiores. E completa o diagnóstico com um olhar para o retrovisor: “Enquanto os pais encontraram imóveis mais acessíveis, empregos estáveis e salários que cresciam junto com a economia, os millennials enfrentaram o oposto”.

A casa própria ainda é desejo, mas com mais barreiras. “É possível, mas o caminho hoje é mais longo e exige planejamento”, alerta Pommerening. Já para Ternus, o desafio está também na mentalidade: “não basta repetir o modelo deles, é preciso ajustar expectativas e usar ferramentas modernas de organização financeira”. O sonho segue, só que com parcelas maiores, prazos mais longos e planilhas detalhadas.

Entretanto, o endividamento traz não apenas impacto econômico, mas também um forte desgaste mental. “O peso emocional das dívidas ou da escassez financeira gera ansiedade, insônia, sensação de insuficiência e que da na produtividade”, aponta Cássia. Não é apenas uma questão de boletos vencendo: é a sensação de estar sempre correndo atrás de algo que nunca chega. No fim, a conta do futuro não é só matemática. É uma mistura de juros, parcelas e escolhas; de ansiedade e pequenas vitórias; de planilhas e momentos que fazem sentido. É o balanço delicado entre sobreviver e viver bem – com ou sem crédito aprovado.

Retrato das dívidas: o retrato do endividamento no Brasil mostra um peso maior entre quem está na faixa dos 41 a 60 anos, que concentra 35,3% dos nomes negativados, segundo o Serasa. Logo atrás estão os de 26 a 40 anos, com 34%, seguidos pelos acima de 60 anos, com 19,2%, e pelos jovens de 18 a 25 anos, com 11,5%. O dado revela que a geração que chega ou já passou dos 40 sente um aperto que não é apenas impressão: está comprovado pelas estatísticas.

O caminho torto da vida real

Se para os millennials a vida adulta com casa, carro e estabilidade se afastou, a Gen-Z sente a cobrança ainda mais cedo. Essa geração, nascida entre 1995 e 2010 e conhecida como “nativos digitais”, cresceu num mundo totalmente online.

A assistente comercial de 25 anos, Érika Almeida Santa Catharina, fala sobre a pressão intensa. “Sinto que a pressão é até maior, porque esperam que tenhamos mais agilidade e mais conhecimento. Então é cobrança para um trabalho mais ágil e assertivo, para conquistarmos coisas que são quase impalpáveis para nossa idade”. Para ela, as redes sociais aumentam a cobrança e a comparação constante. “Quase sempre saio do trabalho e não consigo fazer um jantar sem pegar no celular para resolver coisas fora do expediente. Aos fins de semana preciso trabalhar, então fico ansiosa para resolver e não aproveito minha família”.

A estabilidade não parece distante, mas parece árdua. “Seria utópico dizer que posso ter as mesmas condições que vi meus pais terem, com os salários, versus, os preços atuais, é quase impossível”. Até o discurso do propósito virou cobrança. Érika diz que a busca por propósito gerou ansiedade e desgaste, e que muitas vezes o trabalho é feito pelo ganho financeiro, não pelo que sente. “É uma realidade triste, mas é quase obrigatório me adaptar a isso”.

Pressão precoce

Ana Karolina Cherobin Sirotenco, 26 anos, engenheira de alimentos, Ana Karolina Cherobin Sirotenco, 26 anos, engenheira de alimentos, Ana Karolina Cherobin Sirotenco, 26 anos, engenheira de alimentos, cresceu acreditando que a vida seguiria um caminho linear: estudar, conquistar independência, casar, ter filhos e estar realizada. “A realidade é bem diferente do que cresci idealizando”, diz. A perda do pai, dificuldades financeiras e a maternidade mudaram sua rota. Hoje, concilia a empresa de alimentos com a rotina de mãe de uma bebê de 1 ano e 2 meses e madrasta de uma adolescente de 13. “Preciso dar conta de todas as demandas da empresa, além de cuidar da casa, da minha empresa e do meu marido. Infelizmente a gente se deixa por último nessa rotina”.

O corpo já deu sinais de esgotamento. “A primeira vez que aconteceu, estava tão esgotada, meu corpo parou, fiquei internada por alguns dias”, lembra. A maternidade exigiu reorganizar prioridades. “Ela me fez entender que os sonhos continuam vivos, mas podem acontecer em outro tempo ou de outra forma”.

No fim, a história não se repete – ela se atualiza. Da espera pelo sinal livre no telefone ao toque que vibra madrugada adentro, o cenário muda, mas a cobrança permanece. Se ontem a ansiedade estava na casa própria e no emprego fixo, hoje está no engajamento e na produtividade infinita. O fio que conecta millennials e gen-z é o mesmo: a urgência de pausar, desaprender e, talvez pela primeira vez, inventar um jeito de viver sem manual.

AUTORA

FVcomunica!

Revista Flash Vip, contando histórias desde 2003.
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