No fundo do armário, nas prateleiras empoeiradas das lembranças, onde recordações se entrelaçam com sonhos futuros
Você sabe a relação entre uma caneta Bic e uma fita cassete? Foi com essa pergunta, para muitos peculiar, que surgiu essa pauta. Percebendo os olhares confusos de pelo menos metade da nossa redação, fomos obrigados a reconhecer a dura realidade que nossos corações e almas jovens são resistentes em admitir: estamos envelhecendo.
Respondendo aos leitores da Geração Z, que podem não entender a clássica analogia citada, a relação entre os dispositivos citados está na nostalgia e na função prática que muitos descobriram na época das fitas cassete. Quando a fita de uma K7 se desenrolava ou ficava frouxa, era comum usar uma caneta Bic, cuja forma cilíndrica e tamanho se encaixavam perfeitamente no carretel, para girá-la manualmente para rebobinar a fita de volta ao lugar. Essa prática se tornou um truque popular, tornando os objetos em icônicos símbolos que rememoram uma era pré-digital. Quem é dessa época não tão distante, bem se lembra de aguardar a sua música favorita tocar na rádio para poder gravar a canção em uma fita, criando a sua própria trilha sonora. As fitas K7 eram muito mais do que simples suportes de áudio. Eram diários sonoros, mensagens codificadas em mixtapes feitas com carinho para amigos ou amores. A fita se enrolava em volta do carretel como as emoções da juventude se enrolavam no coração, às vezes frouxas, às vezes apertadas, mas sempre precisando de um ajuste, fazendo o tempo retroceder ou avançar, ajustando a trilha da vida.
Algo que viverá para sempre na memória de Gilson Favero. O empresário foi dono da antiga loja Palladium, que por 32 anos foi ponto de encontro para os chapecoenses entusiastas musicais de plantão. Entrar em uma loja de CDs ou discos não é mais tão comum como algumas décadas atrás, quando o hábito era rotineiro e gastávamos horas e horas, não apenas dedilhando entre as prateleiras para encontrar as novidades sonoras, mas trocando informações e opiniões sobre os nossos gostos com outros ouvintes, igualmente ávidos. Na maioria das vezes, os clientes saíam sem sequer realizar a compra, mas lista de espera do dono da loja estava sempre repleta de pedidos.
“Nessa vida pré-streaming, as pessoas iam até a loja para ouvir as novidades e para conversar sobre música. Conheci muita gente assim, criando conexões com os clientes. Não tinha Spotify, então fazíamos a seleção para vender. O pessoal escutava o disco, marcava quais músicas queria e nós gravávamos”, relembra o ‘Gilson da Palladium’, como ainda é conhecido até hoje, mesmo após quase 10 anos da loja ter fechado. Não há dúvidas que a mídia física do nosso passado nos traz conforto emocional e familiaridade, enfatiza a conexão com um passado coletivo e de preferências com partilhadas. Quem adquire uma mídia física quer algo específico, não apenas o que o algoritmo já escolheu por você. “É muito diferente de ouvir música hoje, de apenas abrir o aplicativo e pronto. Pegar o encarte do CD, ou mesmo do disco, colocar no aparelho, é todo um ritual. Mas não é só a parte do consumo. Não é ir lá e comprar o CD, mas você sair de casa e conversar com outra pessoa que também gosta de música, a interação humana. Isso se perdeu. Bate muita saudade dessa época, das amizades que surgiam. Era muito legal”, recorda Gilson. “As gerações atuais que nem sequer chegaram a viver isso, perdem muito em não ter essa experiência, na verdade, todos perdemos. Hoje tem Netflix, você vê o que quer a hora que quer, e isso é bom. Mas sair de casa, ter que esperar, pegar dicas na locadora, era bem diferente. Hoje não se tem mais apego a nada”, opina o empresário.
Com a mesa posta, um bolinho e café passado, Vania Maria Ballei Marchese e Altair Antonio Marchese nos receberam em sua casa, na sala em meio a uma coleção de mais de mil títulos entre DVD e Bluray. Não seria bem uma coleção, mas sim parte do antigo acervo da Discão Videolocadora, negócio do casal por 31 anos. Durante a nossa conversa, permeada de referências cinematográficas e lembranças dos nossos filmes favoritos, contam, saudosistas, quando eles eram o algoritmo que indicava o título que mais agradaria o cliente. “A gente assistia, pesquisava sobre, conhecia os atores, diretores, tudo para poder indicar para os clientes. Hoje, você lê a sinopse, vê as estrelinhas de quem gostou, o algoritmo te sugere, mas não tem alguém te dizendo algo a mais, te sugerindo, falando sobre o filme”, diz Vania e Altair completa: “Essa facilidade fez perder muito culturalmente, porque você não troca mais ideia com ninguém. Não é só saudosismo, porque quem nasceu na era da tecnologia, sai perdendo, com certeza, pois esse contato não temos mais mesmo”.
Lembrando não apenas dos filmes, mas o cuidado com que tudo era preparado de forma temática. Como a caixa do VHS de Jurassic Park (1993), que imitava um fóssil de dinossauro. Assistir um filme se tornava um evento: marcar para ver com os amigos, reservar o título na locadora e, claro, depender do cliente anterior ter devolvido a fita. Mas assim como o streaming ocupou o lugar das videolocadoras, na época, elas também tiveram sua parcela em aposentar antigas tecnologias. “Quando trocava a mídia, tínhamos que trocar todo o acervo, para manter atualizado. Começamos a loja com o VHS – comprando as fitas nas versões dubladas e legendadas, para agradar todos os públicos –, depois veio o DVD. As mais de 17 mil fitas foram substituídas pelos discos digitais.
Então veio o Bluray, e até o Bluray 3D – que não pegou muito por ser mais caro e precisar de um aparelho específico para rodar. E para cada ‘evolução’, precisamos renovar o acervo”, recorda o casal. A comodidade dos stremings é inegável, porém, para os empresários que não apenas dependiam do interesse do público pela mídia física, mas realmente amavam o mundo cinematográfico, a interação se perdeu. “A locadora veio e tirou o ‘Ibope’ do cinema, pois não precisava que cada um pagasse um ingresso. Você alugava um filme e a família inteira assistia. E de repente veio a Netflix e fez o mesmo com a locadora. Porque você já tem tudo ali na sua TV, não precisa mais se deslocar para escolher um filme, está na sua casa, e ficando disponível muito antes.
E não tem como a gente frear a tecnologia, esse progresso”, afirma Vania, que diz ter encarado a transição de forma mais prática que seu marido. “Para mim foi mais difícil. Não foi só terminar um negócio de anos, era uma paixão. Acho que trabalhei no ramo certo, porque sempre gostei da mídia audiovisual. Da época que namorávamos, enquanto eu esperava para poder buscá-la, eu ia ao cinema, assistir bang-bang. Então entrei no ramo por ser cinéfilo mesmo. Com a grande quantidade de títulos lançada hoje em dia, a qualidade também caiu bastante. As grandes companhias compraram outras, se fundiram, e de várias, virou tudo uma só. E agora faz sempre mais do mesmo”, desabafa Altair.
E esse “mais do mesmo” não é sentido apenas por Altair. Enquanto a Geração X e os Millenials vivem a nostalgia do que passaram, a GenZ sente saudade do que não viveu. Dados do relatório Culture Next, feito pelo Spotify, revelou que cerca de 69% da Geração Z no Brasil gosta de ouvir e ver conteúdo de décadas passadas porque lembra o tempo em que as coisas eram mais simples. E isso, claro, tem um reflexo comercial. Não apenas no mercado musical, mas no audiovisual também. É até difícil decidir o que assistir entre a infinidade de sequências, remakes e revivals de filmes e séries da nossa infância e juventude. Seja uma leve modernização para apresentar a mesma história às novas gerações ou mesmo atores reprisando seus papéis de cultuados longas feitos há 30 anos ou mais, e tornando-se sucesso de bilheteria. Saudade ou esgotamento da criatividade?
Em seu livro Past Forward, o psicólogo norte-americano Clay Routledge defende como a nostalgia pode nos ajudar a viver uma vida mais fundamentada, conectada e com propósito. Mais que uma memória, a nostalgia tem um papel extraordinário de enriquecer o presente, especialmente em momentos difíceis. “Ao nos envolvermos na nostalgia, não estamos nos movendo em direção ao passado. Estamos trazendo o passado para o presente para nos ajudar a construir um futuro mais gratificante”, diz o autor. E se tem uma pessoa que entende de preservar e restaurar o passado, é Nelson Martelli. O aposenta- do de 70 anos é basicamente uma enciclopédia musical e um dos colecionadores de vinis mais conhecido de Chapecó e diria até do estado. Ao nos receber em sua casa, o toca-discos já embalava a melodia da Jovem Guarda. Nossa conversa, que durou algumas horas, só encontrava uma pausa na hora de trocar o lado do “bolachão” ou substituir por um novo título.
A valiosa coleção de mais de 10 mil discos organizados em uma ordem bem específica deixa qualquer um impressionado, assim como biografias e recortes de jornais e revistas que Seu Nelson guarda como as relíquias que são. Em meio ao nosso bate-papo, o colecionador não apenas mostrava seus discos, mas citava músicas, curiosidades e causos de Roberto e Erasmo Carlos com a intimidade de velhos amigos. “Meu acervo é dentro do meu gosto. Tenho Bossa Nova, MPB, Rockabilly, rock nacional, dentre outros, mas o principal é Jovem Guarda. Para mim, a maior banda do país foi Renato e seus Blue Caps”, diz orgulhoso, ao expor desde os álbuns obrigatórios de qualquer colecionador que se preze, aos títulos raros em outros idiomas de todos os artistas, enquanto cantarola algumas canções. A cada LP e compacto mostrado, vem também a história por trás daquele disco, com peculiaridades da banda. Algo que somente um colecionador extremamente dedicado à sua paixão pode proporcionar.
Sua memória é um grande depósito de informações, mas Seu Nelson não fala em nostalgia, pois vive a cultura dos discos diariamente até hoje. Passa o dia inteiro em sua sala, ouvindo as histórias cantadas dos seus amigos prensados em vinil, enquanto trabalha na sua bancada restaurando álbuns e encartes. “A gente faz miséria! Amanhã vou comprar a passagem para ir a uma feira de discos em Curitiba. Nas feiras acontecem as trocas, então levo coisas mais complica- das, para trocar ou vender. Assim conheço muita gente. É uma maravilha! Passamos o dia todo conversando sobre as bandas e as nossas experiências. Os sebos também são um espetáculo! Você chega, conversa com o dono, troca histórias. Mas melhor ainda são as feiras”, exalta Nelson, com um grande sorriso no rosto. Pausa para trocar o disco, dessa vez um dos primeiros da Rita Lee, enquanto mostra seu acervo do Raul Seixas, conta da época que também foi DJ nas discotecas da região e já engata uma história sobre quando contribuiu para a biografia da cantora Miriam Batucada (1947-1994).
“Um cara de São Paulo está produzindo uma biografia da Miriam Batucada há cinco anos e entrou em contato comigo através de um amigo em comum de Curitiba. Estava faltando material, pois ela morreu jovem, aos 47 anos, foi encontrada em casa falecida há quase 20 dias, não tinha filhos, e saíram pouquíssimas reportagens sobre ela nos anos 60 e 70. E eu tenho o disco que ela fez com o Raul Seixas – uma obra de arte –, os artigos guardados e uma foto colorida dela com o Ronnie Von. Fui numa gráfica, fiz cópias para enviar e ele ficou maravilhado. Disse que agora o livro vai sair. Isso foi em dezembro do ano passado. Acho que deve estar quase pronto”, conta o guardador de memórias.
Passado é história, e nostalgia é lembrança. Hoje, numa era em que os streamings e os e-books dominam, há quem ainda valorize o físico, o palpável. A permanência das fitas K7, dos discos de vinil e a resistência dos livros em papel, são respostas a uma saudade coletiva de sentir o mundo com mais do que apenas os olhos. O que você prefere: folhear a Flash Vip impressa ou lê-la online? Não há resposta certa, até porque ela está disponível em ambos os formatos (de nada). Mas a questão é: quantas e quantas vezes já escutamos pessoas nos dizerem que sentem falta de simplesmente sentar, sentir o papel em suas mãos e ler sem a distração de telas? Queremos, de novo, rebobinar memórias, tocar a textura da capa de um livro, do encarte do disco enquanto ouvimos o chiado da agulha do vinil tocando aquele primeiro acorde. Há algo de mágico em redescobrir esses objetos que, no seu tempo, eram apenas ferramentas do cotidiano. Agora, eles retornam como guardiões de histórias, testemunhas de uma era que, por mais analógica que fosse, continha um calor humano que não se encontra em bytes ou pixels. Poder tocar, segurar e, por que não, rebobinar. Afinal, assim como a fita cassete precisava da Bic para voltar ao início de uma canção, talvez nós também precisemos desses pequenos rituais para nos reconectarmos com nossa própria essência. Ela, que antes rebobinava fitas, hoje rebobina sentimentos.
O mercado fonográfico brasileiro cresceu 13,4% em 2023, alcançando R$ 2,8 bilhões e mais de 22,5 milhões de ouvintes pagantes desses serviços, deixando o país classificado na 9a posição global, segundo dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI). Embora este setor seja dominado pelo streaming, que significa 87% do faturamento, o nicho das mídias físicas (0,6%) não deve ser ignorado, com o faturamento dos LPs de R$ 11 milhões. Pode ser uma fatia pequena, diante do bolo todo, mas o aumento foi o maior desde 2018 no país.
Carol Bonamigo