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05/08/2025 guia cultural

Literatura infantil

Onde a infância do pai e dos filhos se encontra a cada página

Pai pela primeira vez aos 42 anos, o chileno Alejandro Zambra escreveu um livro que é, ao mesmo tempo, um diário íntimo, um ensaio sobre o tempo e uma tentativa de tocar o irrecuperável. Em Literatura Infantil: Cartas ao Filho, ele reflete sobre o nascimento e o crescimento de Silvestre, seu filho, compondo uma espécie de cartografia emocional da paternidade: um mundo que a criança esquecerá, mas que transformará para sempre o pai que a narrou.

Diferente de tantos livros sobre paternidade, Zambra não recorre à autoajuda nem ao heroísmo doméstico. Seu livro é feito de afeto, mas também de falha; de espanto, mas também de silêncio. “Na tradição literária, abundam as cartas ao pai”, escreve. “Mas as cartas ao filho são muito mais escassas.” Literatura Infantil não é um livro para crianças – é um livro sobre crescer. Como filho, como pai, como homem. Afinal, assim como aconteceu com ele, nossos pais tentaram nos fazer “homens”, mas na maioria das vezes, não nos ensinaram a ser pais.

Da mesma forma, desde que meus filhos nasceram, aqui em casa, a literatura infantil foi transformada num lugar muito precioso. Todas as noites, quando a rotina se acalma com a fragrância do shampoo Johnson’s Baby, as crianças já esperam ansiosas na cama pelo rito que criamos juntos. Minha voz inunda o quarto à meia-luz. Joana, com nove anos, deita em escuta atenta. Inácio, com três, só tira a boca da mamadeira de leite para poder terminar as frases dos livros que memorizou. Eles prestam atenção a cada detalhe – às palavras que demoram, às pausas, aos gestos. 

Começamos com O Grúfalo, cujo protagonista é o ratinho esperto que ludibria o bicho peludo com presas incríveis e garras terríveis. Depois, A parte que falta, e Joana suspira como quem já entendeu que a incompletude também é forma de ser. Shel Silverstein aparece de novo com Uma girafa e tanto e Leocádio, o leão que mandava bala – histórias que provocam, desconcertam e abraçam com o riso. Dr. Seuss entra em cena com o caos rimado de Gatola da Cartola e com o sussurro ecológico de O Lorax. Joana capta os recados escondidos. Inácio tenta decifrar o bigode amarelo. E eu penso no que diz Zambra: ser pai é viver assustado, mas também mais vivo do que nunca. Talvez seja isso: essa leitura compartilhada é minha maneira de me manter desperto.

Nos últimos tempos, o livro O melhor lugar do mundo e outros poemas, de Eduardo Sens, virou nosso favorito, que apreciamos a conta-gotas. Um raro livro de poesia para crianças que consegue nos encantar pelas profundidades das superfícies. Foi com ele que aprendemos que o “melhor lugar” pode ser uma bosta, afinal, como o beautiful boy de Lennon, a vida é o que acontece enquanto estamos ocupados fazendo planos. A cada poema de Eduardo, olho discretamente para Joana e percebo a mistura de riso e choro de emoção. 

E no fim da noite, como um fecho necessário, chega O Menino Maluquinho. Sempre ele. Inácio o imita com uma panela invisível e vento nos pés. No final, aprendemos com Ziraldo que sua maluquice do menino, era na verdade, uma forma de ser feliz. 

Zambra escreve que a literatura infantil é uma forma de amor. E quando leio para meus filhos, não é apenas a infância deles que está em jogo. É a minha também. É a possibilidade de seguir escrevendo cartas com a voz. De formar sombras juntos na parede do quarto, como naquela primeira vez em que Alejandro Zambra viu seu filho, Silvestre, com vinte minutos de vida. E um pai que, noite após noite, descobre que o melhor lugar do mundo é este: o instante em que o mundo cabe inteiro dentro daquele quarto à meia-luz. 


AUTOR

Ricardo Machado

Colunista convidado da FV, é doutor em história, professor na UFFS e curador da Livraria Humana, em Chapecó.
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