“Os centauros são a projeção nítida da dupla natureza humana: uma bestial, outra divina” – Junito de Souza Brandão
Ao reler Marinheira de Açude, um ser mitológico invadiu minha imaginação e ganhou feições oestinas: o centauro. Isso porque as personagens do livro parecem munidas de dois corações, como os centauros que são seres meio cavalo, meio humano. De uma parte, o coração que segue o instinto, parco em afetos: “Quando uma pessoa se machucava, diziam: pede para alguém dar um beijinho na ferida que sara. Se pedisse, ninguém daria, as pessoas eram avessas a demonstrações de carinho”. De outra parte, o que se compadece das tragédias, capaz de desenvolver o humor como forma de dar conta das perdas: “Tô esperando minha aposentadoria pra Odila comprar os remédio dela, e se sobrar eu compro um caixão”, diz o nonno moribundo.
O resultado desta contradição das vivências registradas pela autora em nossa região é um livro sinfônico que, se eu fosse você, não deixaria de lê-lo. Afinal, esta- mos diante de “um acontecimento”, como bem assinalou Carlos Henrique Schroeder na orelha da publicação da editora Reformatório. Michelli Provensi escreveu um livro prodigioso: Marinheira de Açude ganhou o Prêmio Clarice Lispector da Biblioteca Nacional de 2022, atravessando fronteiras e sendo reconhecido nacionalmente.
A escrita da autora é repleta de expressões e modos de falar locais. Um dos protagonistas é Osmari, figura maiúscula de um dos contos, que em seu delírio de morte sonha com “chimia de abóbora, uva, salame, morcilha branca, morcilha escura, morcilha amarela, torresmo, nata, cuca sortida, sagu de vinho, sagu de suco, pão alto, pão baixo, cueca virada, bolacha pintada”. Osmari era fumicultor e perdera o pai suicidado. No fim das contas, também sucumbiria aos efeitos trágicos da plantação de fumo: envenenado pelos agrotóxicos aplicados à lavoura e, por extensão, ao seu próprio corpo. São 17 narrativas ficcionais curtas, embebidas em caldo autobiográfico, muitas delas tragicômicas, contadas pela escritora que nasceu em São Miguel do Oeste, com a infância e adolescência passadas na cidade de Maravilha. Atualmente, Michelli vive e trabalha em São Paulo e, há poucos dias, voltou à região a convite da Humana Sebo e Livraria para participar da 2a Festa Literária de Chapecó. Em conversa com o público, ela contou que para escrever as histórias, voltou a escutar rádios daqui e fez pesquisas com parentes, além, é claro, de recorrer à sua memória que, aliás, é rica em detalhes e sentidos.
Fica a dica para desfrutar de uma literatura divertida e ao mesmo tempo profunda – um meio termo difícil de se encontrar na literatura contemporânea brasileira. Ao olhar no espelho da ficção, como no trecho a seguir em que observa uma cicatriz, Michelli acaba encontrando pedaços de si na cartografia do Oeste catarinense: “Bem no meio do joelho esquerdo tem uma cicatriz parecida com o mapa de Cunha-Porã. Dá até para ver a BR-158 passando pelo centro”.
Fernando Boppré