Um século de guerra, um século de resistência.
O livro de Rashid Khalidi Palestina: Um século de guerra e resistência (1917–2017) — publicado no Brasil em 2024 pela editora Todavia — é, simultaneamente, uma história política e uma memória familiar. Escrito por um dos mais reconhecidos historiadores palestinos, combina a erudição acadêmica com a experiência íntima de quem pertence a uma linhagem profundamente enraizada em Jerusalém. Ao revisitar arquivos, cartas, memórias e documentos de sua própria família, Khalidi não apenas narra o século XX palestino, mas o inscreve como parte de uma his tória mais ampla: a de um povo submetido a um longo processo de colonização, deslocamento e resistência.
A força do livro reside justamente na desmontagem da narrativa dominante que insiste em apresentar o conflito como uma disputa “entre dois lados equivalentes”. Para Khalidi, o que se desenha desde o fim do século XIX é outra coisa: uma guerra colo nial, apoiada sucessivamente por potências imperiais, destinada a transformar uma terra habitada por uma ampla maioria árabe em um Estado judeu exclusivo. Em seu entender, a guerra começa com a Declaração Balfour de 1917, que outorgou aos sionistas, sem mencionar sequer os palestinos, o direito a um “lar nacional” na Palestina.
Um dos fios condutores mais impressionantes do livro é a carta de Yusuf Diya al-Khalidi, prefeito de Jerusalém no fim do século XIX, enviada a Theodor Herzl em 1899. Nela, advertia: a Palestina já é habitada, não pode ser simplesmente entregue a outro povo. A resposta de Herzl, cheia de condescendência, antecipa um padrão que se repetirá nas décadas seguintes: a negação da existência palestina, como se fosse possível apagar um povo com decretos diplomáticos ou slogans propagandísticos como “uma terra sem povo para um povo sem terra”.
A narrativa de Khalidi não se limita, entretanto, à denúncia. O subtítulo do livro — um século de guerra e resistência — sinaliza sua ênfase na vitalidade de uma luta que não se resigna. Das revoltas contra o Mandato britânico, passando pela Primeira Intifada, até a persistência cotidiana em manter vivas língua, cultura e memória, a obra recupera a força de um povo que, mesmo diante da violência contínua, insiste em permanecer. Há derrotas, divisões, dilemas internos — mas há sobretudo a recusa em desaparecer.
Ler este livro hoje é atravessar uma sensação de estranha continuidade: as páginas dedicadas às décadas passadas iluminam de modo doloroso as imagens de destruição e morte que acompanhamos no presente. Khalidi nos lembra que nada do que se vê em Gaza ou na Cisjordânia ocorre no vazio; são capítulos mais recentes de uma história longa, marcada por deslocamentos, cercos e massacres. O genocídio não se anuncia apenas nos números atuais de mortos: ele já estava inscrito nas declarações diplomáticas, nas operações militares, nos mapas que redesenharam fronteiras e apagaram al deias inteiras.
E, no entanto, algo permanece. Entre os escombros, a língua que resiste, o gesto de quem planta oliveiras, o jornal clandestino, o grito dos que não se calam. Nos interstícios da destruição, o livro recolhe esses sinais frágeis e obstinados — lembrando-nos de que nenhuma violência é capaz de esgotar a vida que insiste em permanecer e a memória que insiste em voltar.
Mas Khalidi nos lembra que não basta contemplar a memória. Hoje, diante da catástrofe em curso, condenar o genocídio palestino é o gesto moral mais urgen te que nos cabe.
Ricardo Machado
Colunista convidado da FV, é doutor em história, professor na UFFS e curador da Livraria Humana, em Chapecó.