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30/09/2024 papo cabeça

Engajamento pelo ódio

Apesar da desconfiança crescente em relação aos partidos políticos, a filiação partidária tem aumentado no país

Uma pesquisa realizada por cientistas políticos da universidade federal de São Carlos (UFSCAR) e da Universidade de São Paulo (USP), revelou que apesar da desconfiança crescente em relação aos partidos políticos, a filiação partidária tem aumentado no país, e um dos principais motivos é a rejeição aos adversários do campo político oposto. O estudo mostra que, entre os filiados, cerca de 70% consideram, em algum grau, a aversão e o ódio ao rival como motivos relevantes para aderir a uma legenda. Os pesquisadores classificaram este fenômeno como “engajamento pelo ódio”, uma vez que o sentimento atua como um incentivo fundamental para que os filiados (36% dos entrevistados) se tornem altamente engajados, para evitar a possibilidade de vitória do partido que mais rejeitam em uma eleição. 

Prestes a iniciarmos mais uma votação para eleições do executivo e legislativo municipal, esse comportamento chama atenção e levanta um sinal de alerta. Para analisar o que isso pode trazer de consequências à sociedade, a FV conversou com o coordenador da graduação e das pós-graduações de direito e assessor jurídico educacional, na IDEAU, de Passo Fundo/RS, Vitorio Gheno Dervanoski Junior. Vitorio é especialista em gestão de cidades, em direito público: constitucional e administrativo, em direito educacional e mestre em gestão de políticas públicas.


Flash Vip: Como você enxerga o aumento da filiação partidária em um cenário onde a desconfiança em relação aos partidos é crescente e o ato é motivado pela aversão ao adversário político? Quais as implicações disso para o fortalecimento ou enfraquecimento do sistema político brasileiro?

Vitorio Dervanoski Junior: De fato, pesquisas recentes apontam para o aumento do número de filiações partidárias caminharem, par e passo, com o aumento do

descrédito dos partidos políticos, a nível nacional. Hoje o que move o cidadão, em grande parte, é a aversão ao “outro lado”, o que, por si só, asfixia o sistema político e faz com que não possamos evoluir, enquanto cidadãos. As temáticas, as ideias e as políticas públicas, que deveriam ser objeto de discussão, não chegam sequer ao pano de fundo de uma argumentação política. Elas são esquecidas, esfacelando o sistema político, como um todo. Mas vale destacar: a polarização do eleitorado, que se acirrou após a última eleição presidencial, ao meu ver, por si só, não é o problema. A concentração dos filiados políticos nos polos ideológicos, direita e esquerda, e a identificação partidária são fenômenos diferentes. Sob algumas condições favoráveis, o aumento da polarização pode até beneficiar o fortalecimento das identidades partidárias, quando permeada por discussões qualitativas e valorosas. Infelizmente, não é o caso atual no Brasil, pois, neste momento, a aversão ao outro lado é o fato gerador do processo.


FV: O que esse tipo de comportamento, onde a filiação é impulsionada pelo ódio ao oponente, revela sobre o estado atual do debate político no Brasil? Esse comportamento fortalece ou enfraquece o sistema democrático?

VDJ: Sem dúvida, enfraquece. Primeiro, há que se ressaltar que, em meio ao processo eleitoral municipal atual, se você perguntar aos eleitores quais são as bandeiras ou ideologias dos partidos políticos, a imensa maioria não saberá indicar quais os apontamentos ideológicos dos mesmos. Os partidos, como regra e, apesar das redes sociais, se afastaram da sociedade e o prejuízo, neste caso, é a falta de discussão ideológica, com vistas ao aprimoramento das temáticas e das políticas públicas. Não apenas o sistema eleitoral fica comprometido, como também a própria confiabilidade nas instituições democráticas diminuiu.


FV: Quais são as possíveis consequências para a nação se o engajamento continuar sendo guiado mais pelo desejo de derrotar o adversário do que pela construção de um projeto político positivo? Em que medida essa polarização e o foco no antagonismo podem afetar a governabilidade e a estabilidade política do país?

VDJ: Quase não existem projetos de construção, senão de desconstrução do outro. Veja o exemplo do governo federal que, ainda agora, não cansa de apresentar o que, na sua visão, foram equívocos do governo anterior. No governo anterior, deu-se o mesmo. Nos campos políticos há mais transpiração para destruir e pouca inspiração para construir. Há vários caminhos, para o que, na minha visão, seriam vias de crescimento, uma delas é “furarmos a bolha” a qual pertencemos, para que, ao ouvir a opinião do outro e aceitar ideias contrárias às nossas, de forma honesta e desarmada, possamos experienciar um segundo olhar e evoluir. Atualmente, discutimos pessoas e não ideias. A proposição quase que desapareceu do dicionário político. Analisemos a questão das instituições pátrias e os contornos da polarização atual: a última eleição presidencial teve números próximos de 51% para Lula e 49% para Bolsonaro e os desdobramentos deste processo eleitoral e a divisão política ainda permeiam ambos os campos políticos. Neste momento, a própria isenção do Poder Judiciário, em específico do Supremo Tribunal Federal, que deveria emitir apenas decisões técnicas e sem qualquer viés político, é questionada. O debate político parece ter contaminado, na opinião de muitos, as decisões jurídicas. Notem, em pesquisa recente, datada deste mês de setembro, aponta que entre os eleitores de Lula, quase 88% dizem confiar no STF; já entre os eleitores de Bolsonaro, mais de 92% dizem não confiar na mesma Corte. As relações institucionais estão completamente tensionadas e se os poderes constituídos não servirem de exemplo, como a sociedade seguirá caminho diverso? Os poderes foram contaminados, quiçá até foram promotores da polarização e aí, há que se pensar, em relação do Poder Judiciário, no brocardo de François Guizot: “Quando a política penetra no recinto dos tribunais, a justiça se retira por alguma porta”.


FV: Na sua opinião, quais estratégias poderiam ser implementadas para incentivar uma cultura política mais focada em debates de ideias e projetos, ao invés de ataques ao oponente? Qual o papel das instituições educacionais nesse processo?

VDJ: O diálogo fértil precisa ser incentivado e aproveitado. Hoje a polarização reflete a completa incapacidade de ambas as partes do espectro político de argumentar e conciliar. Neste caso, todo o engendramento institucional corre o risco de travar, pois não parece haver disposição para acordos mínimos. Há disposição apenas para beligerância e intolerância. Penso que uma maior democratização do ensino e a capacitação intelectual, sem qualquer apego às orientações ideológicas, se é que isso, de modo geral é possível, capacitaria cidadãos conscientes, participativos e compromissados com o real debate de ideias e o desapego ao ódio. É fato notório que muitas das instituições educacionais raramente permitem a discussão formativa, inclusive com atos de intolerância e desrespeito, ou seja, por fazer parte da sociedade, muitas instituições, educacionais ou não, contaminaram-se, também. A academia pode ser uma frente de resistência e desenvolver papel crucial na retomada de discussões salutares. Os processos educativos voltados para a promoção de cidadãos críticos, mais imbuídos de consciência cívica e abertos ao bom debate, podem irradiar efeitos para todo seio social, tornando-se um cabedal positivo e impedindo a erosão das instituições sociais e políticas.


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