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21/12/2021 especial

Do volátil ao frágil

A velocidade das mudanças no mundo afeta o modo como temos que lidar com ele. A incerteza se tornou incompreensível, gerando ansiedade pela sua fragilidade em uma sequência não-linear. Bem-vindo ao Mundo BANI.

Somos seres ansiosos por natureza, e a pandemia aflorou ainda mais esse sentimento, fazendo com que empresas retraíssem pelo medo do incerto. Se eu não sei o que acontecerá amanhã com o mundo, que dirá com a minha empresa?

No final da década de 1980, no período pós-Guerra Fria, surgiu no US Army War College um termo para definir o panorama de globalização fortemente digital em ascensão. Estamos falando do Mundo VUCA – acrônimo inglês que significa Volatile, Uncertain, Complex e Ambiguous (volátil, incerto, complexo e ambíguo).

Essa terminologia se popularizou no decorrer dos anos para definir planejamentos estratégicos no mundo dos negócios, tornando-se comum no meio empresarial como ferramenta de análise de mercado, simulações de cenários e modelos de visão de futuro, orientando decisões corporativas.

E assim foi por alguns anos. Entretanto, a aceleração das informações, dos avanços tecnológicos e das conexões, tornou necessária a evolução deste termo para redefinir e enquadrar a atual sociedade em que vivemos. Desta forma, o antropólogo e futurologista norte-americano Jamais Cascio criou o conceito BANI. O novo acrônimo vem das palavras Brittle, Anxious, Nonlinear e Incomprehensible, que significam Frágil, Ansioso, Não-linear e Incompreensível. Embora a expressão tenha surgido em 2018, a pandemia da Covid-19 e a crise social, sanitária e econômica vivida mundialmente trouxeram ainda mais sentido à ela. “Algumas das mudanças que vemos acontecendo em nossa política, nosso meio ambiente, nossa sociedade e nossas tecnologias são familiares – estressantes à sua maneira, talvez, mas de um tipo que já vimos e lidamos antes. Mas muitas das convulsões agora em curso não são familiares, são surpreendentes e completamente desorientadas. Elas se manifestam de maneiras que não apenas aumentam o estresse que sentimos, mas também multiplicam esse estresse”, escreveu Cascio em seu artigo Facing the age of Chaos (em tradução livre, Enfrentando a era do Caos), em 2020.

A fragilidade fala da suscetibilidade a falhas súbitas que podem ser catastróficas, um cenário completamente propenso a aumentar, ainda mais, a ansiedade. As decisões precisam ser tomadas rapidamente, e causa e efeito parecem estar desconectados e desproporcionais, retirando a linearidade dos processos. E o que antes era apenas ambíguo agora é completamente incompreensível. Parece, mesmo, que estamos vivendo em meio ao caos. O BANI, portanto, não serve apenas para descrever os negócios, mas a maneira como nós lidamos com o mundo.


Oportunidades baseadas em conexões

À medida que a conexão nos aproxima e nos torna mais livres, ela nos deixa mais dependentes das suas ferramentas. E por causa disso, serão cada vez mais curtos os períodos em que os termos serão substituídos. Isso é o que pensa o empresário Alexandre Weimer. O empreendedor e investidor concordiense trabalha com mentoria de inovação, vendas e marketing e observa uma sequência lógica do VUCA para o BANI. “Ao momento que escolhemos a tecnologia como a nossa evolução, começamos a ter uma velocidade tão grande que nem categorizamos mais as transformações. Se pegarmos a Revolução Industrial, tínhamos um período em que foi categorizado como uma ‘era’, e hoje é tanta velocidade que nem conseguimos mais nominar essas revoluções”, opina.

Para Alexandre, a falta de preparo e estudo por parte das pessoas – sejam elas empreendedores ou colaboradores – torna-as mais suscetíveis ao erro, especialmente pela lentidão em acompanhar as mudanças de mercado. “Este novo momento fragiliza as empresas, grandes ou pequenas, porque o ciclo de vida delas é mais curto. Estávamos acostumados com a linearidade, de fazer um planejamento e aquilo acontecer. E hoje começamos a observar as questões mais cíclicas. Desde o VUCA se falava que o mundo era volátil, incerto, complexo e ambíguo, então não adianta querer que tudo saia como o planejado. Pois em um ano vai acontecer muita coisa. A própria pandemia aconteceu com toda essa velocidade justamente porque estamos muito globalizados”, reflete o empresário.

Outra questão que contribui para o aumento da ansiedade é o próprio fator geracional, que não lida da mesma forma diante das situações. “A juventude hoje tem um senso de urgência maior, ela quer tudo mais rápido. Uma das dificuldades das transições de gerações nas empresas é que a pessoa que começou quer que o próximo sofra o quanto ela sofreu, e a pessoa que está iniciando tem a ansiedade para resolver mais rápido, às vezes pulando etapas importantes”, analisa Weimer.

Muito se fala das últimas tendências, novos aplicativos, lançamentos de amanhã que tornarão obsoletas as descobertas de ontem, mas todo o know-how acumulado nos anos de empreendedorismo e mentoria de Alexandre deu a ele a certeza que o grande diferencial competitivo do futuro são as pessoas.

“Achávamos que era a tecnologia, mas a reconstrução do futuro é muito mais entendermos como iremos viver em sociedade, como as pessoas irão lidar com tudo isso. Porque a tecnologia não vai mais parar. É loucura pensarmos que vamos regredir nesse sentido. A tecnologia vai continuar avançando e teremos que aprender a viver e sermos mais humanos com a tecnologia. Portanto, assuma que é ansioso e aprenda a lidar com isso. Aceite que nenhum negócio é sólido e se prepare para lidar com a fragilidade dele. Não existe fórmula mágica, o mundo é imprevisível. Não sabemos se passaremos por outra pandemia na nossa geração, mas podemos aprender com essa”, conclui.


Você é o que você faz

Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje), publicada pela Agência Brasil em fevereiro de 2021, mostrou que 52% dos trabalhadores brasileiros sofrem de ansiedade enquanto estão no local de trabalho. Outros 47% disseram se sentir cansados com frequência, enquanto o desânimo e a frustração foram apontados como principal sentimento por 22% e 21% dos profissionais entrevistados.

Já é difícil desvencilhar a pessoa que você é na empresa da pessoa que você é em casa, mas e quando a sua casa é a extensão do seu trabalho? Como separar o eu profissional do eu pessoal? Nesses últimos dois anos, com o estabelecimento necessário do home office, muitas pessoas tiveram um obstáculo nessa divisão, confundindo as suas “personas” e encontrando impasse ao desligar uma da outra. “A sua saúde mental, seu sono, seu dia a dia se confundem nisso. E cuidar de si melhora também seu desempenho profissional. É uma questão de adaptação, adquirir qualificação e requalificação. Cada vez menos as empresas estão procurando graduações e cada vez mais buscando habilidades. Seja de comunicação, de resolver problemas e, agora mais do que nunca, inteligência emocional. Porque não dominando as suas emoções, impacta todo o resto”, afirma o empreendedor e head de aceleração de Chapecó, Thales Akimoto

Nessa era de conexões e comparações, para Thales tanto as pessoas quanto os negócios são descritos pela sigla, e ele concorda com o pensamento de Alexandre, que é preciso olhar para o fator humano, além dos números, faturamentos e métricas. “É bem difícil projetar para daqui alguns anos, por isso olhamos para as pessoas que estão envolvidas nos negócios, se elas serão capazes de sobreviver aos momentos de crise, passar pelas adversidades dentro da empresa, em um mundo instável, imprevisível e frágil”, atesta.

Para lidar com esse mundo, cada vez mais as chamadas soft skills (habilidades interpessoais) se tornam importantes e necessárias. Se antes as competências técnicas eram valorizadas acima de tudo, agora as aptidões comportamentais são tão essenciais quanto. Essas competências subjetivas auxiliam não apenas a lidar melhor com as pessoas, mas fala sobre a capacidade em se adaptar perante as diversas situações. “Precisamos de pessoas dispostas a mudar seus negócios do dia para a noite. Esses últimos dois anos foram prova disso e quem conseguiu se adaptar e mudar mais rápido, consequentemente teve mais sucesso. Não dá para ser apegado. O mundo está assim, não posso fazer muito para mudá-lo, mas posso fazer algo para me preparar e ajustar a ele”, pondera Thales.

Mas como se adequar a isso tudo? Claro, não podemos descartar a intuição, que é resultado da sua trajetória. Como afirma Akimoto, o feeling é o seu passado, pois não tem como adivinhar o futuro. “Você pode tentar prever certos cenários baseado na sua vivência, não criar riscos com base no ‘achismo’. E isso não tem a ver com idade, tem a ver com experiência”.


A sociedade do cansaço

Trabalhando há uma década com gerenciamento de projetos em pesquisa, desenvolvimento e inovação, a pinhalense Eline Casasola defende que para lidar com o medo deste momento incompreensível e frágil é preciso estar propenso ao erro. “O principal ponto é a velocidade. Você não tem tempo para esperar ter certeza, pois tem que agir de forma rápida. E isso dá margem ao erro. A questão é que temos a cultura da punição ao erro, e ele não pode ser visto como fracasso, mas como aprendizado. Encarar o erro como um problema faz com que o meu time não tente novas ações” .

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em seu livro A Sociedade do Cansaço, analisa os efeitos colaterais do discurso motivacional e o grande mercado que ele criou, nos fazendo viver em uma sociedade que naturalizou a cobrança excessiva por produtividade, pela alta performance e pelos resultados, tudo isso sob o pano da positividade. Pois, afinal, todas as ferramentas estão ali, ao meu alcance, basta eu querer. Desta forma, não nos permitimos errar e somos bombardeados pelo feed das redes sociais nos questionando o quanto “aproveitamos” da pandemia para sermos úteis, gerando uma carga de cobrança para sairmos dela como pessoas novas e mais qualificadas. É difícil não ficar ansioso quando tantas fórmulas prontas são ofertadas o tempo todo para fazer de você uma pessoa “melhor”. 

E o que isso tem a ver com o mundo BANI? Tudo! Assim como permitir o erro, Eline também acredita ser necessário normalizar o ócio, o descanso, o “não quero ser produtivo agora”.

“A procrastinação pode ser produtiva, assim como o ócio pode ser criativo. Estar no meio do caos gera ansiedade e, às vezes, saindo da imersão do problema é mais fácil de vir a solução na sua mente. Mas o mundo hoje não nos permite ter momentos de procrastinação. Devemos ser produtivos o tempo todo, mas ninguém é 100% produtivo o tempo todo. Não podemos ser hipócritas em pensar que sim, é muita pressão”, opina.

E essa patrulha vem tanto da corporação quanto do próprio colaborador, onde as pessoas se cobram cada vez mais para apresentar resultados. O psiquiatra Enzo Vicente Bertholdo explica que a evolução social nos obriga a produzir cada vez mais e, até pouco tempo atrás, qualquer debate acerca do assunto vinha com o discurso do opressor e do oprimido – no caso, do patrão e do empregado. No mundo atual, esse tipo de conceito não serve mais. “Neste contexto que estamos falando, não existe mais a relação de opressor e oprimido, eu e o outro, só existe eu e eu mesmo. Nisso, de colocar na nossa cabeça que temos tudo à mão, só basta nos esforçarmos, tenho que ser melhor e maior o tempo todo, o conflito é interno. Eu passo a ser meu próprio opressor. E se não tiver controle sobre isso, se torna um looping infinito. E assim, as siglas do BANI são a descrição do ser humano primitivo”, exemplifica.

Bertholdo esclarece que, ao entender que o mundo busca hoje pessoas maleáveis e com habilidades emocionais e cognitivas, voltamos ao ser humano primitivo, que se adaptava ao meio em que vivia e extraía o máximo dele enquanto podia. Tivemos algumas “revoluções” ao longo dos séculos, e cada uma delas trouxe mudanças significativas para a maneira que vivemos e interagimos enquanto sociedade. “Na Revolução Industrial, houve um grande salto, com as máquinas tomando conta da mão de obra braçal. E agora, na revolução tecnológica, perdemos aquilo que considerávamos a característica mais importante em nós, que é o QI – o coeficiente intelectual, a capacidade de memória e o raciocínio lógico. Hoje, quem faz isso são os computadores, com memórias muito melhores que a nossa e capacidade de processamento de dados infinitamente maior. O que nos restou, que é apenas dos humanos, é o coeficiente emocional, a parte interpessoal e intrapessoal – sua capacidade de interagir com o meio, com os outros e consigo mesmo. Só que toda a nossa história foi colocada como uma busca pelo QI e não o QE. E temos que agora almejar o QE, que são as relações humanas”.

Gerenciar pessoas é sobre lidar com emoções, anseios, medos e angústias, diz o psiquiatra. Ao tratá-las como seres humanos e não algoritmos, as relações passam a ser horizontais e não verticais, independente da posição hierárquica. E isso requer saúde mental e emocional.

“É interessante pensar nisso como um restart. As coisas vão mudar rapidamente. Teremos que abrir mão um pouco da busca de estabilidade, segurança e garantia de um futuro que nunca existiu. E isso está sendo escancarado para nós, com essas palavras do BANI, que nada mais são que a descrição do próprio ser humano. A parte interna foi, por muito tempo, menosprezada. Falar que está triste, angustiado, ansioso, até pouco tempo era visto como frescura. Hoje, estamos quebrando alguns paradigmas. Somos frágeis, ansiosos, não-lineares e incompreensíveis. Talvez o mundo esteja se tornando mais humano, afinal. E vai precisar de muito mais humanidade para sobreviver a isso”.

Como se adaptar a algo que você precisa compreender que muda o tempo todo? A única certeza que podemos ter é que tem mais transição vindo por aí. 


AUTORA

Carol Bonamigo

Jornalista, especialista em Cinema e Realização Audiovisual, Diretora de Jornalismo e sócia da revista Flash Vip
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