Home > andarilho > Casarão
26/08/2021 andarilho

Casarão

Tem histórias que começam agora e outras que já começaram há um tempo.

Tem histórias que começam agora e outras que já começaram há um tempo. Algumas estão edificadas, outras se edificando. Em todas elas, as memórias são as ferramentas para a construção e comprovação do que já passou. 

Nessas andanças por todo o lugar, a observação atenta do nosso entorno nos permite reconhecer que o passado sobrevive no tangível e no intangível. Nos caminhos percorridos, edificam-se mais do que um “amontoado de pedras” as construções que já serviram para muita coisa. Na rua que leva o nome do doutor, lá perto do velho novo e atual terminal rodoviário municipal, existe um casarão que arde em memórias. Ele é grande como o nome diz, e velho como as madeiras que o suportam: passa dos 70 anos. Pra gente que, como município, completou 87 anos de emancipação política, essa edificação é histórica, pois já acolheu uma fábrica e distribuidora de vinhos, pequenos comércios e um hotel, um dos mais antigos de Concórdia. 

Nas passagens pelo lugar do tempo e do espaço onde está, as pessoas chegaram e partiram, levando com elas lembranças vividas e memórias vívidas do que se passou. Como a senhora que conta, pois quando menina, brincou nesse casarão. Correu tanto que numa subida de escada caiu e cortou a canela, marcada no corpo até hoje. O pai da menina que brincava foi quem construiu o casarão. Ele também recebia as uvas e os barris de madeira, gigantes, que ainda saltam da memória da senhora. Ao lado da fábrica existia uma casa noturna. Para que não vissem o que acontecia lá dentro, duas grandes madeiras foram colocadas na janela da vizinha para que as crianças não acompanhassem a movimentação. Dessas coisas a menina lembra também, porque memória é difícil de apagar, mas fácil de apegar.

O casarão foi acompanhando o tempo, ano após ano, ocupando a paisagem urbana. O piso de madeira foi ficando gasto, as paredes já tinham pequenas cicatrizes, como a canela da menina. Foi ficando quietinho, dividindo o espaço com prédios modernos e cheios de vidro, concreto e aço. As pessoas continuam a chegar e a partir do hotel e nos mototáxis com quem o hotel divide o lugar. As lojas no andar térreo vendem motosserras, fertilizantes, cadernos capa dura, tinta guache. A edificação, agora mais velha, mostra os sinais do tempo aos transeuntes e aos hóspedes.

Em julho de 2021, numa tarde comum de dia limpo e com sol, as rádios da cidade noticiaram uma grande perda: o Hotel Casarão pegou fogo. Sob os olhares dos concordienses, a madeira estalava, o telhado caía e o branco do hotel se transformava em puro carvão. Interditado, foi fechado sob risco de desabamento total. Ninguém sabe dizer se aquele "amontoado de pedras” voltará a abrigar qualquer coisa. As únicas coisas que sobraram desse patrimônio são aquelas que quase ninguém tira: a memória de quem viveu ou de quem viu a história ardendo em chamas.


AUTOR

Artêmio Filho

Colunista convidado da FV, é administrador, produtor e gestor cultural de Concórdia, na Sabiá - Gestão Criativa
LEIA TAMBÉM