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29/03/2023 responsabilidade social

Uma mão lava a outra pata

Projetos visam diminuir a superpopulação de animais abandonados e mudam a história de bichinhos e humanos

A  primeira vez que se adota um animal de estimação é um marco transformador na vida de quem tem um apreço especial por uma amizade peluda. Na realidade, até mesmo na de quem nunca foi muito chegado. Quem nunca ouviu a frase “não quero saber de bicho dentro de casa” se transformar em “traz ele aqui no meu colo para fazer companhia”? O censo de 2021 realizado pelo IPB (Instituto Pet Brasil) aponta que 70% dos lares brasileiros contam com ao menos um pet, o que corresponde a 149,6 milhões de cães, gatos ou afins. Dado que coloca o Brasil como terceiro país no ranking mundial.

Em Chapecó, ainda não é possível ter este número absoluto, mas é notável a grande rede de voluntários e canais nas redes sociais digitais que fazem o possível para reduzir a quantidade de animais abandonados e que estes possam encontrar uma família. Esta é a história de Alfredo. Encontrado em janeiro de 2020 nas margens de uma rodovia movimentada, ele foi o sexto cãozinho resgatado naquele período por Marlise Cavalheiro, protetora voluntária de projeto que arrecada fundos para a castração de animais – o Tampets. Segundo relato, o cachorro fedia, estava magro e cheio de moscas e, após levá-lo ao pet shop para o banho, descobriu-se uma das patas completamente partida. “Corri para a clínica, e mesmo sabendo dos altos custos da cirurgia ortopédica, não pensei duas vezes em tentar ajudá-lo. Infelizmente, a perna dele estava tão moída que não tinha como repará-la, então precisou ser amputada”, conta a voluntária.

Ainda em recuperação, Alfredo – ou Alf, para os mais íntimos – precisava de um lar temporário até estar devidamente saudável. Marlise integra um amplo time de voluntários engajados numa grande mobilização em Chapecó em prol da causa animal. Através da divulgação em redes sociais, Alf chegou até Tuana Covatti, e foi prontamente abrigado. “Quando ele descansava, dormia sentado. Latir então, nem acontecia. Pensávamos todas as vezes: quanta coisa esse bichinho não passou? Não bastasse isso tudo, ainda teria toda a adaptação após amputação da perna”, conta a tutora. Passados os dias em seu lar temporário, o cãozinho começou a confiar nos tutores e a andar com equilíbrio, sentindo-se mais seguro. Quase um ano após chegar ao “lar temporário”, Tuana e o esposo Rafael já sabiam que Alf tinha encontrado o seu lugar, após divulgarem sem sucesso o animal para adoção. O final feliz de Alfredo tem um cão saudável em um lar com uma família cheia de carinho, que é dividido com duas irmãs caninas: Olli e Neve. Apesar de todo o amor que recebe, algumas cicatrizes dos traumas ainda persistem. “Nunca saberemos se a perna quebrada foi por atropelamento ou por maldade humana. Buscamos sempre fazer com que ele se sinta seguro e que entenda que nunca mais será deixado para trás. Até onde depender de nós, os dias dele serão de muito cuidado e amor”, finaliza Tuana.

 Foto: Arquivo Pessoal

Infelizmente, Alf é um dos poucos sortudos privilegiados com um lar após as situações enfrentadas. Chapecó encara um grave problema de superpopulação de animais de rua, que se multiplicam cada vez mais e podem espalhar doenças tanto para pets quanto humanos. Na tentativa de amenizar este problema, foi criado em 2018 o Tampets Chapecó (@projetotampetschapeco), projeto pelo qual Alfredo foi resgatado e castrado. A iniciativa partiu de voluntários que buscaram meios de juntar recursos para castrar animais de rua e de famílias carentes e diminuir o número de filhotes abandonados.

O Tampets conta com 10 voluntários e arrecada tampas plásticas, lacres e latas de alumínio que são vendidas para empresas de processamento dos materiais. Em 2022, foram 3,2 mil quilos de tampas plásticas e 307 quilos de alumínio arrecadados, o que rendeu recursos para a castração de 37 animais. Desde o início do projeto, foram vendidas mais de 18 toneladas de tampas, além de 503 quilos de alumínio. No total, o Tampets já bancou 145 castrações, resultando em cerca de 600 animais que deixaram de viver abandonados, levando em conta que cada um deles teria uma ninhada com média de quatro filhotes.

Fernanda Conte é uma das voluntárias e relata que, apesar de Chapecó dispor de seis ONGs de proteção aos animais e apoio do poder público, o projeto está “secando o gelo”. “Falta conscientização nas pessoas. Há demandas de pessoas que têm um bicho de raça para cruzá-los e doar ou vender os filhotes. Tem cachorro sobrando na cidade, e os vira-latas vão se multiplicando e sobrando, resultando em uma população gigantesca e pouca gente para adotar e se responsabilizar ou cuidar dos que estão na rua”. A prioridade do projeto é atender fêmeas no cio encontradas na rua, mas os voluntários vão além da castração em si. Os animais são resgatados e muitas vezes necessitam de algum atendimento clínico, precisando de alguns dias a mais no lar temporário até encontrarem uma família. O que nem sempre acontece.


“No ano passado, resgatei uma cadela gigante no cio. Eu a trouxe para casa, o Tampets pagou a castração e ela estava saudável, mas não sabia como agir porque já tinha passado um mês e não consegui um adotante. Divulguei ela novamente e avisei que caso não fosse adotada, ela seria devolvida para a rua. Você não faz ideia do tanto de haters que apareceram me criticando”, relata Fernanda, após questionamentos como "para que resgatar se vai devolver?”, ou “para que tirar da rua se vai dar um mês de vida boa e depois jogar lá de volta?”. De fato, o ideal seria não haver animais na rua. Mas o simples fato dele ser resgatado e devolvido castrado já tem grande impacto na redução da superpopulação. Felizmente, a cadela resgatada por Fernanda foi adotada uma semana depois, onde hoje dorme na mesma cama dos tutores.


Um problema de todos

Cuidar da população de cães e gatos nas ruas de Chapecó é uma questão de saúde pública, e hoje é gerida por um órgão da Prefeitura. O Núcleo de Atenção aos Pequenos Animais (NAPA) foi criado em setembro de 2021, mediante as demandas recebidas de protetores independentes e voluntários das ONGs. O foco é também castrar bichos de rua e de famílias de baixa renda, além de atender denúncias de maus tratos. Para isso, foi aberto um edital público, em que clínicas veterinárias inscreveram-se para atender às demandas, que chegaram a mais de 1,4 mil animais operados no ano passado. A expectativa é que, até o final deste ano, 1,8 mil cães e gatos sejam castrados nas clínicas credenciadas pelo NAPA, que têm as cirurgias financiadas pela Administração Municipal. Além de castrados, os animais são microchipados para identificação e divulgados para a adoção, ou também devolvidos de onde foram retirados.

Os próximos projetos do órgão envolvem mapear os animais de rua e buscar subsídios para o controle de zoonoses. “Estamos discutindo a possibilidade de os agentes públicos de saúde, que estão todos os dias nas ruas, documentarem a quantidade de animais que há em Chapecó. É importante para sabermos onde tem a maior concentração na rua ou com famílias de baixa renda. Hoje, identificamos mais chamados nos bairros São Pedro, Bom Pastor, Vila Betinho, Vila Esperança, Efapi, Expoente e no interior”, conta Ana Triantafyllou, coordenadora do NAPA.

O Núcleo realiza também um trabalho de conscientização acerca de maus-tratos e abandono de animais. O órgão recebe denúncias através do aplicativo Chapecó Digital, que podem ser feitas anonimamente. O protocolo é enviar uma equipe até o local para fiscalizar e orientar o tutor, dando um prazo de cinco a três dias para realizar as melhorias no local do animal, o que normalmente acontece, segundo Ana. “No ano passado, um homem foi autuado por venda ilegal de filhotes, ele tinha aberto até uma página no Instagram. Nós averiguamos, e ele não tinha um canil, mas um macho e uma fêmea que realmente eram cruzados para vender os filhotes. O homem disse não ter ciência de que isso era contra a Lei, e demos um prazo para ele castrá-los, o que foi feito. O caso prosseguiu no Ministério Público”, conta. O órgão atende também demandas de casinhas de madeira, confeccionadas em parceria com as penitenciárias e entregues mediante solicitações feitas por famílias de baixa renda no Chapecó Digital. “Já transformamos vidas de vários animais que antes dormiam no relento e hoje dormem numa casinha. É um projeto que cresceu bastante”, finaliza Ana.


Carinho por tradição

Cuidar da saúde e do bem-estar de animais de rua torna-se cada vez mais uma cultura enraizada em Chapecó, fruto de uma parceria firmada entre voluntários, iniciativa privada e agora o poder público. Um trabalho desenvolvido já há longa data, onde voluntários independentes e entidades oferecem espaço, tempo e recursos para cuidar de animais resgatados e operados, principalmente a partir da fundação da Voluntários Amigos dos Bichos (@voluntariosamigosdosbichos) em 2007, com o mesmo objetivo de diminuir a população abandonada. Hoje, a ONG trabalha na construção da Fazendinha, um abrigo para os 53 animais que foram deixados aos cuidados da entidade ou foram adotados e devolvidos depois de certo tempo, ou que passaram por longos períodos de recuperação, não podendo mais retornar ao local de origem. O espaço terá o objetivo de dar um lar definitivo a cães e gatos que em sua maioria já são velhinhos, com problemas de saúde e que têm maior dificuldade de serem adotados.

Nesta ampla rede de apoio que se observa na cidade, uma mão lava a outra, e esta, lava uma pata. Pessoas que se doam em tempo, espaço, dinheiro e coração para ajudar àqueles que não têm condições de curar a si, mas que já nascem sabendo amar e cuidar. São muitas as dificuldades enfrentadas e as histórias que acabam de maneiras não tão felizes como a de Alf. Mas são projetos como estes e tantos outros que fazem uma enorme diferença na hora de mudar a história de um animalzinho e, consequentemente, a de seu humano. O mais importante lembrar: adotar ao invés de comprar também é engajar na causa. 


AUTOR

Fernando Bortoluzzi

Jornalista e explorador em busca de expansão e conexão.
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