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06/10/2022 guia cultural

São Miguel

Para conhecermos a região em que habitamos, é recomendável recorrer aos livros que contam como viviam nossos antepassados

A compreensão da história do interior de Santa Catarina, mais especificamente da região Oeste, passa por um romance incontornável: “São Miguel”, de Guido Wilmar Sassi.


Publicado em 1962 por Guido Wilmar Sassi – escritor nascido em Lages que em 2022 completaria 100 anos de vida – o livro é a síntese das relações sociais, econômicas, ambientais e religiosas do Oeste catarinense na primeira metade do século 20.

Um dos personagens principais deste livro é o Rio Uruguai. Enquanto a seca grassa, a cidade de São Miguel (antiga Vila Oeste) está como que paralisada. Já que não chove, o escoamento das balsas de madeiras até a Argentina está suspenso. Sem viagens os balseiros não recebem. Sem dinheiro a vila não prospera.

Possivelmente, a história foi baseada na grande seca ocorrida no Oeste entre os anos de 1943 e 1948. No livro, a crise hídrica é tão intensa que começa a circular pela cidade as crendices de que São Pedro só enviaria chuvas se alguém morresse nas águas do Uruguai: “Só se Deus for servido, e se morrer gente de desgraça, afogado”, diz o velho Fabiano, feiticeiro da região, mais poderoso do que o Padre Henrique.

E é exatamente isto que acontece, de forma trágica, com a personagem Leonor. Filha de um antigo coronel da cidade, Inacinho Vieira, ela engravida de um caixeiro- -viajante e se torna a vergonha da família. Passa a viver escondida e ultrajada pela mãe, Dona Marta. Ela não aguenta o tormento e comete suicídio jogando-se ao rio. Este é apenas um dos episódios que mostram as agruras sofridas pelas mulheres ao longo do livro (e da história na região). 

Ambrosina, doméstica de Dona Marta, é assediada de todos os lados por homens como Minguta Fortuna e Juan Medina, mesmo sendo de conhecimento de todos que ela namorava Zé Pintado. Quando Zé Pintado vai tirar satisfações com o argentino Juan Medina, o que sobressai é um xenofobismo latente. E o pior: Ambrosina cede suas economias a Zé Pintado para a compra da mobília da casa em que morariam após casados. E o que Zé Pintado faz?

Embarca para Chapecó e desaparece com o dinheiro, deixando-a sem noivo e sem dinheiro algum.

Se, por um lado, São Miguel é um romance regionalista, que pode muito bem ser colocado ao lado de textos de autores como Érico Veríssimo, Jorge Amado e Rachel de Queiroz, vá encontrá-lo em sebos: de fato, São Miguel, de Guido Wilmar Sassi, ao completar 60 anos de sua publicação, pede por uma nova e cuidadosa edição. por outro, os temas abordados possuem caráter universal.

Martinho Figueiredo, um dos tantos personagens que representam os trabalhadores das serrarias, não se cansa de constatar as injustiças sociais produtoras da pobreza generalizada na região. Um dos exemplos é a morte do velho Ramiro: uma vida inteira de trabalho nas serrarias, mas não dispõe de um caixão de madeira para ser enterrado.

E o mais importante: na leitura de São Miguel é possível perceber a extensão do estrago ambiental e social causado pela extração desenfreada da mata nativa. É desolador andarmos pelo Oeste catarinense e não encontrarmos mais árvores centenárias ou mesmo milenares, já que elas foram dizimadas e enviadas para terras distantes.

O livro é um testemunho da nossa história. É pena que esteja esgotado e que você só vá encontrá-lo em sebos: de fato, São Miguel, de Guido Wilmar Sassi, ao completar 60 anos de sua publicação, pede por uma nova e cuidadosa edição.

AUTOR

Fernando Boppré

Colunista convidado da FV, é livreiro da Humana Sebo e Livraria, escritor e mestre em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina
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