Não se surpreenda se se pegar gargalhando ou boquiaberta com as palavras de Leonora Carrington.
Se você procura em um livro algo surpreendente e engraçado, ao mesmo tempo profundo e vigoroso, A Corneta é uma leitura indispensável. Escrita pela artista e escritora Leonora Carrington (1917-2011), este romance tresloucado acaba de ser lançado no Brasil com um atraso de seis décadas, considerando que foi publicado em inglês em 1976.
A protagonista Marian Leatherby – uma excêntrica mulher surda e careca de 92 anos – tem seu destino alterado quando ganha de presente uma corneta auditiva. Com o instrumento, ela escuta o filho, o neto e a nora, com quem mora, discutirem sobre interná-la em um asilo. Ao ser levada para a instituição, cujas edificações são tão delirantes quanto o grupo de mulheres que lá habita, abre-se uma jornada de descoberta e transformação.
O romance é recheado de referências ao ocultismo, ao tarô, à mitologia, ao rosacrucianismo e à wicca. A técnica narrativa é complexa: começa como uma novela sobre uma velhinha que mora no México; torna-se linguagem surrealista cujo cenário é o asilo; surge Doña Rosalinda Alvarez de la Cueva, uma santa profana que viveu na Europa no século 18, lembrando o gênero literário conhecido como hagiografia; com a morte de uma das internas, o texto assume ares de romance policial; por fim, quando o planeta começa a congelar, surge uma legítima ficção científica especulativa.
Ufa! Como Leonora Carrington fez tudo isso? Ao pesquisar a sua trajetória biográfica, descobre-se um dos principais nomes do movimento surrealista. Nascida na Inglaterra, filha de mãe irlandesa, passou a maior parte da vida no México, após um romance com o pintor alemão Max Ernst. Além de escritora, ela foi uma pintora de destaque. Aliás, a capa do livro
é uma pintura hipnotizante da própria Leonora. Seu legado é tão poderoso que inspirou o conceito curatorial da última edição da Bienal de Veneza. Fica a dica para a leitura e não se surpreenda se se pegar gargalhando ou boquiaberta com as palavras de Leonora Carrington.
Fernando Boppré
Colunista convidado da FV, é livreiro da Humana Sebo e Livraria, escritor e mestre em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina