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13/12/2022 guia cultural

As vidas de Marcel Schwob

“Em todas as partes do mundo existem devotos de Marcel Schwob que constituem pequenas sociedades secretas”. J. L. Borges

“As datas de 1867 e de 1905 abarcam sua vida”. Com essa frase, Jorge Luis Borges termina o seu breve texto em que apresenta a tradução argentina do Vidas Imaginárias, de Marcel Schwob. Resolvia assim, de forma direta, a apresentação deste curioso livro sobre vidas, mas que também poderia ser definido como um livro de leituras, uma obra sobre nossa relação com os livros. Apesar de Schwob ter tido relativo reconhecimento em seu tempo, Borges sabia que estava escrevendo sobre um autor desconhecido de seus contemporâneos. Por isso, faria daquela apresentação, uma forma de criar seus próprios antecessores. Desde então, Schwob não só foi lido borgianamente, como grande parte das edições e traduções das Vidas Imaginárias passaram a vir acompanhadas com o texto do escritor argentino.

Marcel Schwob nasceu em Chaville na França, de uma família culta de origem judaica. Seu pai, Isaac-Georges, além de proprietário de jornais, participou dos círculos parnasianos, inclusive, desenvolvendo amizade íntima com Flaubert. No entanto, a grande influência veio de seu tio, Léon Cahun, um erudito que se tornou famoso por escrever relatos de viagens e histórias do oriente. Ele viveu alguns anos sob tutela desse tio, imerso na coleção da célebre Biblioteca Mazarine em Paris, onde viajaria livremente entre as estantes, fascinado pelos livros de Julio Verne, traduzindo, ainda adolescente, a obra de Luciano de Samósata e estudando com afinco a filosofia de Schopenhauer. Essa formação inicial abriria as portas para os cursos de linguística com Ferdinand Saussure sobre a fonética indo-europeia, ainda que, mantivesse, todos esses anos, trabalho constante na imprensa. Traduziu apaixonadamente e manteve contato com Robert L. Stevenson, ao ponto de, nos últimos anos de vida, ainda que doente, se lançasse em uma desesperada viagem em busca do túmulo do escritor escocês morto nas Ilhas Samoa. Desta viagem, Schwob voltaria sem forças, entregue à morte, para ser enterrado em Paris.

Para viver de sua obra, Schwob encontrou seu lugar na imprensa, ocupando esse novo espaço possível para escritores profissionais, em narrativas cuja forma era indeterminada entre o conto e a crônica, cujos limites entre real e ficcional eram propositalmente imprecisos. Ao longo de 1894, começou a publicar nos jornais algumas histórias sobre “vidas de poetas, deuses, assassinos piratas, princesas e damas galantes”. Em 1896, organizou sob o título de Vies imaginaires relatos de 22 personagens e um interessante prefácio discutindo os limites da ciência histórica e a relação com a escrita biográfica. São textos curtos, baseados em fontes históricas e literárias, em que Schwob imprime sua narrativa particular sobre a vida de indivíduos como o poeta Lucrécio, a princesa Pocahontas, do herege Frate Dolcino e do pirata Capitão Kid. São histórias narradas como “brechas individuais e inimitáveis”, sem o interesse de impor lições morais ou tentativas de generalizações que visassem explicar contextos. Para ele, interessava narrar algumas extravagâncias, cujas insignificâncias, ainda que efêmeras, pudessem estimular a imaginação do leitor. Ao seu modo, o livro enfrentaria questões como: O que é uma vida? O que pode ser uma vida? Como ela pode se converter em literatura? Como articular historicamente a combinação entre imaginação, história, sonhos e mitificações? Nesse complexo jogo entre arte e história, ficção e realidade, o Vidas Imaginárias apresenta a defesa da biografia em sua dimensão poética e estética. 

AUTOR

Ricardo Machado

Colunista convidado da FV, é doutor em história, professor na UFFS e curador da Livraria Humana, em Chapecó.
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