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08/08/2023 especial

Amor não é um conto de fadas

Desde crianças, somos encantados por fábulas com promessas do único e verdadeiro amor. Crescemos, mudamos e aprendemos que somos livres para escrever nossas próprias histórias – e que o “felizes para sempre” existe, seja com uma ou mais pessoas

Era uma vez, uma bela donzela que vivia aprisionada no quarto mais alto da torre de um castelo, guarnecido por um furioso dragão. Todos os dias, ela se debruçava sobre o parapeito da janela e sonhava quando um valente cavaleiro montado em um nobre cavalo seria capaz de resgatá-la, para então viverem felizes para sempre. Engraçado como um enredo genérico como este pode nos remeter a tantas histórias que ouvimos repetidamente desde crianças. A Bela Adormecida, Branca de Neve, Cinderela, todos esses contos de fadas reproduzem, desde o século XVII, a fantasia de encontrar o único e verdadeiro amor. Porém, desde a tradição oral até chegar finalmente às páginas dos livros, eles sofreram alterações que tornaram as narrativas muito mais fabulosas e românticas do que eram, com forte influência do cristianismo. Ficamos tão satisfeitos com finais felizes, que raramente nos fazem questionar como é que teriam sido esses “felizes para sempre”.

Se imaginarmos por uma ótica realista, não levaria muito tempo para a donzela perceber que se casou com um completo desconhecido e que a paixão não passava de uma idealização. A beleza mágica do cavaleiro desaparecia toda vez que ele tirava sua armadura e seus modos se pareciam mais com os do cavalo. Ela não era realmente feliz, passava o dia nas dependências do castelo da família do príncipe, cerzindo ou amamentando os filhos – já estavam no quarto. Remoía sobre o que seu esposo teria visto de mais encantador na filha do ferreiro quando os pegou na sua cama, enquanto se condenava por ser completamente abalada pelo sorriso e a gentileza do padeiro. No final das contas, o conto de fadas havia se transformado na fuga de uma torre para outra um pouco mais espaçosa e barulhenta.

A questão é que, de fato, o “felizes para sempre” pode sim existir, mas nem sempre da forma como nos foi ensinado. Vanessa*, por exemplo, conheceu seu príncipe encantado ainda criança, quando moravam em uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul. Este conto inicia com uma amizade, construída com brincadeiras, banhos de rio e bailões. Na adolescência, a confissão de uma paixão resultou em um beijo roubado por Marcos*, que mais tarde se mudaria para Porto Alegre para estudar em um colégio religioso. Nas férias, voltava ao interior e retomava temporariamente o namoro com Vanessa. Quando separados, cada um seguia sua vida como solteiros. E assim foi até seus 20 anos, quando Marcos se mudou para Cuiabá e, certo dia, atendeu a um telefonema. “Ou você quer ou não quer, porque tem um cara aqui que quer casar comigo”. “Se você topa trabalhar para a gente construir alguma coisa juntos, vem morar comigo”. E assim, Vanessa foi ao encontro de seu amor de longa data, que dois anos depois tornou-se seu esposo. Casamento com direito a véu, grinalda e sobrenome – tudo por muita pressão da família. “Eu parecia uma árvore de natal”, comenta ela.

Anos vêm, anos vão, hoje aos 48 e 53, Vanessa e Marcos moram em Chapecó e celebram 25 anos de casamento, que precisou passar por algumas manutenções. “Existe diferença entre amor e desejo. Desejo sexual é o nosso lado animal falando, nosso instinto. Já o amor é consciente. Eu o amo mesmo, tenho a necessidade da presença dele, e não é de forma sexual, é a companhia daquele ser humano que está comigo há tantos anos, que é a minha família, meu porto seguro, assim como eu sei que sou para ele”, declarou Vanessa. Esta diferenciação tornou-se a chave para um entendimento muito maior do que é a prioridade na relação. “Eu sou muito de sair, fazer festa, já ele não. Eu saio, beijo amigas na boca, mas isso não envolve aquele sentimento que tenho pelo Marcos, são coisas totalmente diferentes. Considero a nossa relação monogâmica, porque eu jamais escolheria viver com outro, mas não é uma monogamia instaurada, onde você tem que ficar somente com essa pessoa e para o resto da vida. Às vezes, sinto desejo de ficar com outras pessoas”. 


 


Pega, mas não se apega

Vanessa e Marcos vivem um modelo de relação que vem se popularizando cada vez mais – gerando debates até mesmo nas esferas política e filosófica – e que foge do padrão de compromisso de exclusividade que conhecemos através de nossos pais e avós. Grande parte do comportamento humano é construído com base na sociedade, como explica o psicólogo Edson Stapassola, pós-graduando em Psicanálise e Relações de Gênero, com foco em Ética, Clínica e Política. “Muito do nosso desejo, a forma de interagir, é criação social. A monogamia tem um início histórico, que é quando o ser humano começa a se estabelecer em comunidades, como forma de os sujeitos saberem de quem são filhos e evitar relações incestuosas. Foi um marco de organização da sociedade que colocou a monogamia como um certo controle e acabou sendo naturalizada. Aí surge também a questão da economia da família. O quanto aumenta o poder de renda e de consumo quando duas pessoas estão juntas. Este, assim como a influência da religião na sociedade – especialmente a cristã mais adiante – é um dos fatores que fortalece a instituição monogâmica”, explica Edson.

Se o desejo sexual é inato da natureza humana e a monogamia não é, por que ela continua sendo a regra? Fato é que essa regra nunca foi seguida à risca. Atire a primeira pedra quem não conhece alguém que foi vítima ou agente de infidelidade. “Escutamos histórias de avós, pessoas mais antigas, de traições que já existiam, mas não eram faladas, era tabu. Há uma expectativa muito grande sobre ter uma relação de exclusividade. Desde cedo nos é vendido que somos sujeitos incompletos e precisamos seguir uma lista pré-estabelecida: crescer, estudar, trabalhar, casar, ter filhos, envelhecer e morrer. Mas para o homem, sempre houve a possibilidade de ter relações ‘abertas’, porque a sociedade nunca olhou com maus olhos. E hoje, o quanto é rico nós pensarmos na possibilidade da mulher também abrir a relação e viver novas experiências”, completa o psicólogo.

Assim aconteceu com Vanessa, que apesar de ceder às pressões da família para ter um casamento tradicional, optou por escolher o próprio caminho a trilhar com Marcos, retomando a forma como a relação funcionava na adolescência. “No começo, você só deseja aquela pessoa, passaria uma semana na cama com ela. E muitos casais jovens se juntam e separam por não saber diferenciar desejo de amor. ‘Você me traiu porque transou com outra pessoa’. O que essa transa significou? Foi algo casual? Está pensando em dar continuidade nisso? Isso veio depois de uns dez anos de casados. Conversamos e vimos que não havia mais o mesmo desejo, mas concordamos que não pensávamos em viver um sem o outro. ‘Então como a gente resolve?’. ‘Tá bom, pega, mas não se apega’, brinquei, e aí concordamos em ficar nessa. Mas a gente não necessariamente conversa sobre as pessoas com quem a gente sai, porque tem coisas que não precisamos dizer, e tá tudo bem, está tranquilo. Traição, para mim, seria se ele fosse agressivo comigo, me batesse”.

Entretanto, lidar com as emoções que afloram durante as experiências de abrir a relação pode não ser tarefa fácil para qualquer candidato. O desejo de ser exclusivo, sim, é algo natural da psique humana. Para Vanessa, nunca foi um problema. “Não posso querer a exclusividade de um outro ser humano. Exclusivo meu são minhas roupas, minhas calcinhas, sutiãs. Agora, o Marcos não pode ser só meu. Tem uma parte do sentimento dele que é destinada só para mim, mas é algo que não se pode controlar. Claro que às vezes eu penso ‘será que ele não vai conhecer uma pós-doutora muito inteligente, maravilhosa?’. Ele tem as colegas dele, mas ele prefere ficar comigo. Eu sei que se algum dia ele tiver a ideia de algo assim, ele vai me avisar. Nossa única regra é não continuarmos juntos se um dos dois deixar de amar”.

Edson explica que o desejo por exclusividade está ligado à construção da nossa autoestima, fase que acontece ainda quando somos pequenos. “É a busca por formas de se sentir especial. É importante para a criança se sentir o centro das atenções para constituir uma segurança forte e depois conseguir seguir a vida, e isso impacta nas relações. Quando uma traição acontece, o principal sentimento que bate é o da insegurança. Uma ferida narcísica é aberta, e isso pode dificultar para o sujeito ter relações que não sejam monogâmicas”. O psicólogo comenta também que abrir a relação como estratégia para resolver uma instabilidade – medida que Vanessa e Marcos desempenharam com sucesso após anos de intimidade – nem sempre é o melhor caminho. “Quando você pega uma relação que já está fragilizada e abre, isso consequentemente pode afetar a autoestima dos envolvidos e gerar inseguranças. ‘A pessoa consegue sentir prazer em outras pessoas além de mim, onde está o problema?’. Muitas vezes, é muito difícil para a gente criar algo novo, sempre vamos tentar trabalhar com a base que a gente já tem, que no caso é a relação monogâmica”, pontua. 


Novos tempos, novas histórias

Se tem alguém com a cabeça mergulhada demais nos problemas do mundo real contemporâneo para se perder em ilusões de contos de fadas, esses são os Gen Z – a geração que nasceu após a metade da década de 1990. Marcados por um ambiente inseguro de enxurradas de informação, crises econômicas e políticas, violência armada, mudanças climáticas e até uma pandemia, jovens entre 18 e 25 anos têm se voltado a construir segurança em si mesmos, priorizando questões como autenticidade e saúde mental. É o que revela o relatório The Future of Dating (O Futuro do Namoro) 2023, organizado pelo Tinder – o carro chefe dos apps de relacionamento. 

Os Gen Z representam mais de 50% dos assinantes da plataforma, e revelam também uma mudança de paradigma sobre o que é considerado prioridade entre as conquistas da vida. Metas conservadoras como casar e ter filhos ficam em 10º lugar para os próximos três a cinco anos, enquanto para a geração anterior são prioridade nível 4. Autoconfiança, crescimento pessoal e bem-estar são o sapatinho de cristal dos atuais jovens de até 25 anos, o que proporciona que suas visões de relacionamento alcancem muito além de encontrar completude em outra pessoa. Muito pelo contrário, eles precisam já se sentir completos para conseguir se engajar com um segundo – ou até mais indivíduos.


Entretanto, apesar de auxiliar nas possibilidades de conhecer pessoas novas de todas as partes do mundo, apps de relacionamento são um exemplo de materialização da nossa sociedade de consumo, onde tudo é muito rápido e instantâneo e firmar relações pode ser um desafio. “São vitrines onde você nem precisa interagir para ver se as características da pessoa batem, olha até o signo, e o algoritmo encontra alguém supostamente compatível com você. Isso mostra uma dificuldade que existe de se relacionar, não apenas amorosamente, mas socialmente. É uma busca por mais liberdade, mas há também uma liquidez das relações por trás. Isso transparece muitas vezes o medo de saber que se está criando vínculos afetivos com alguém. Porque quando a gente investe nisso, tem chances de não dar certo e a pessoa se frustrar. É aí que podem acontecer comportamentos de autossabotagem, você evitar sequer tentar certas coisas”, explica Edson.

Aos 27 anos, Rafael* conta que o uso de aplicativos como Tinder e Grindr era rotineiro, e confirma que dar um match não significava realmente que você iria conhecer a pessoa. “Você só vai colecionando pilhas e pilhas de matches sem nenhum tipo de contato. E geralmente, quando acontece, não costuma se desenvolver muito, ao menos não na minha experiência. Mas quando rolava uma intenção de sair, era um ambiente interessante para conhecer pessoas”. Ele relata que as experiências lhe renderam amizades e namoros, dois deles inclusive fora do padrão monogâmico. Entretanto, no momento, está disposto a retomar o modelo tradicional na relação que está construindo. “Pelo conforto da minha parceira, ela não se sente confortável com relações abertas ou não-monogâmicas. Mas também porque estou com outras prioridades. Observando experiências anteriores, percebo que manter e dar atenção para uma relação aberta traz toda uma manutenção afetiva a mais. Você tem uma construção e um cuidado maior, em relação aos acordos, por exemplo, que não estou com tempo e disposição para lidar no momento”.

Rafael conta que suas relações abertas foram descobertas em conjunto sobre novas possibilidades. Na primeira delas, teve maior contato com a ideia política desse novo modo de ver as relações e os afetos, mas não necessariamente saía com mais pessoas. Os acordos não eram tão dialogados e seguiam bastante o senso comum. Já a segunda aconteceu de forma mais dinâmica, envolveu mais conversas, abertura e fechamento da relação, tentativas e voltas atrás. Ainda assim, o jovem afirma que está disposto a explorar diferentes formas de se relacionar. “É algo que surge da curiosidade ou das pessoas não darem mais tanto valor para coisas que antes eram muito grandes, como beijar alguém além do seu parceiro em uma festa. Hoje em dia, isso não é mais uma questão e já é uma quebra de paradigma muito grande. É a ideia de que as relações já não cabem mais naquele molde de que tudo é santo, que todo mundo tem papeis bem definidos”.

No círculo social do rapaz, este é um debate popular e a prática já é bem aceita e naturalizada. “O movimento não-monogâmico trata de uma visão de mundo sobre os afetos e como nos relacionamos nas nossas vidas romântica e sexual. Mas em um contexto onde a gente tem tantas questões políticas e sociais construídas nas cabeças das pessoas, desconstruir a ideia de hierarquias, de um núcleo familiar-romântico-sexual muito bem centrado, não é algo que vejo acontecendo com facilidade”, conclui Rafael. Já em outros meios, falar sobre um relacionamento que foge à norma ganha tom de subversão, o que faz com que o segredo seja preferível ao incômodo. A família de Vanessa, por exemplo, desconhece a flexibilidade do casamento da filha. “Minha mãe me daria uma surra aos 48 anos, ela não pode nem sonhar. Eu até fico besta que jovens também se surpreendem que sou casada e fico com outras pessoas. Mas no meio que a gente vive, com colegas de trabalho, não dá para falar sobre. Não consigo entender o que uma relação afetiva entre duas, três, cinco, sete, dez pessoas tem a ver com a vida dos outros”, exclama.

Por muito tempo, nos foi vendida a ideia de viver um romance digno das páginas de um conto de fadas. Séculos depois, entre mentes que buscam cada vez mais autenticidade e autonomia, o “amor romântico” perde espaço para relações mais realistas, honestas e genuínas. A quem se sentiu convidado ou até mesmo inclinado a experimentar novas formas de se relacionar, o psicólogo Edson deixa uma provocação: “Essa mudança de paradigma mostra o quão importante é investir em si mesmo. Entender de onde vêm os medos, preocupações e receios. Muitas barreiras que nos atrapalham em nossas relações e na nossa vida têm o seu lado psicológico. Negamos tantas tentativas porque tem também muita influência da sociedade, da cultura, da história do sujeito e das pessoas ao seu redor. Isso tudo dificulta olhar e acolher aquilo que a pessoa está sentindo, seja bom ou não. Permita-se olhar a si mesmo e estar diante do seu sujeito de desejo”. A grande questão é encontrar o “felizes para sempre” que melhor funciona para si e aproveitar a estrada de descobertas e aprendizados que leva até lá.


*Nome fictício adotado para resguardar a identidade da fonte.

AUTOR

Fernando Bortoluzzi

Jornalista e explorador em busca de expansão e conexão.
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