Um dos eventos mais aguardados pelos brasileiros, a Copa do Mundo garante emoção e festa por aqui, mas chama a atenção de todo o planeta para a cultura e costumes rígidos do país sede
A cada quatro anos, é de praxe que quase todo brasileiro precisa preparar o coração para um dos mais aguardados eventos esportivos. Afinal de contas, não é à toa que o chamado “País do futebol” disponha de cinco taças da Copa do Mundo da FIFA, altas expectativas e uma torcida que aguarda ansiosamente há 20 anos pela conquista do hexacampeonato. Além do Brasil, seleções de 31 outros países entram em campo até o dia 18 de dezembro para disputar a taça mais cobiçada do esporte mundial.
Este momento sagrado contagia até mesmo quem pouco entende de futebol. Muitos estabelecimentos fecham as portas e liberam seus funcionários para prestigiarem a Seleção Brasileira, ao mesmo tempo que outros sintonizam todas as suas televisões para juntar o povo e não perder um lance sequer. O rito também não dispensa reunir uma penca de gente no sofá de casa, com direito a bandeira do Brasil e outras decorações auriverdes, vuvuzelas, cara pintada e, é claro, uma cervejinha gelada na mão.
Entretanto, a edição deste ano conta com alguns diferenciais: a Copa no Qatar será a primeira sediada no Oriente Médio, motivo pelo qual foi marcada para iniciar no mês de novembro (o que tradicionalmente ocorre em junho), outrora jogadores e torcedores teriam de enfrentar altíssimas temperaturas, baixa umidade do ar e tempestades de areia. Outra novidade é que a cervejinha vai ficar para quem assistir aos jogos de casa, já que no Qatar é expressamente proibido o consumo de álcool fora das Fan Fests, espaços preparados para os turistas beberem e se recuperarem – onde um copo de cerveja pode custar R$ 73,00. Essa restrição foi imposta por conta da lei e dos costumes do país, que são regidos pela Sharia, constituição vigente em países islâmicos que segue os fundamentos de seu livro sagrado, o Alcorão.
Alguns turistas disseram não se incomodar com a impossibilidade de beber fora dos espaços delimitados. Um deles é Giovani Martinello, jornalista que embarcou em uma viagem de 30 horas até Doha para cobrir o Mundial para uma rádio e uma emissora chapecoense. Afinal, pouco tempo sobra para beber ou até fazer turismo em meio a uma cobertura internacional multiplataforma. “É um trabalho diferente, não é algo que já estou no piloto automático. Tem que ser tudo bem feito, pensar nas pautas, trazer um pouco da cultura. Você pode se preparar para mil situações, quando você chega lá é tudo diferente”, afirma o profissional que há 31 anos acompanha eventos esportivos e tem o futebol como paixão de infância.
Esta não é a primeira experiência de Giovani em uma Copa do Mundo. Em 2018, ele acompanhou o Mundial diretamente da Rússia, e descreve assistir aos jogos in loco como “surreal e inigualável”. “Os estádios são enormes e completamente lotados, o pessoal vai para se divertir, fazer festa, é uma atmosfera maravilhosa. Apenas estando lá para sentir essa energia, só de lembrar eu me arrepio. A experiência de estar num lugar desses é uma emoção diferente do primeiro ao último minuto”. E não é apenas o futebol que encanta toda essa vivência. A oportunidade de conhecer a cultura de países completamente diferentes abre um leque de lugares para explorar e comidas para experimentar.
As polêmicas envolvendo o Qatar vão muito além da restrição ao álcool. O país dispõe de duras legislações do ponto de vista dos direitos humanos, o que levantou uma série de manifestações contra o país ser sede da Copa. A Seleção da Dinamarca, por exemplo, entra em campo com um uniforme que praticamente oculta o emblema e os patrocinadores do time. “Esta camisa carrega uma mensagem. Não queremos estar visíveis durante um torneio que custou a vida de milhares de pessoas. Nós apoiamos a seleção dinamarquesa em tudo, mas isso não é o mesmo que apoiar o Qatar como um país sede”, afirmou a patrocinadora Hummel em posicionamento oficial nas redes sociais.
Outra manifestação está nas braçadeiras que seriam utilizadas por capitães de algumas seleções, com as cores do arco-íris e a frase “One Love” como uma mensagem de protesto contra as leis anti-LGBTQIA+ do Qatar. A FIFA, por outro lado, proibiu o uso dessas faixas sob risco de punição e impôs um modelo mais neutro e menos colorido com a frase “Não à discriminação”. Lá, a homossexualidade é punível com até oito anos de prisão. A doutora em Ciências Políticas, Yasmin Calmet, explica que a Sharia pode ser muito cruel em suas penalidades. “Geralmente, homossexuais são apedrejados, há chibatadas e também penas de morte por enforcamento ou fogueira, depende muito do local. É algo incômodo para os defensores dos direitos humanos e para as seleções, porque há aquelas que contam com jogadores homossexuais. Tudo isso faz questionar por que fazer a Copa em um lugar que não respeita direitos”. Yasmin não possui religião, mas precisou se aprofundar no Alcorão e na Sharia para sua especialização em Democracia, Conflitos Armados, Segurança e Terrorismo.
Beijos e abraços em público, independente do gênero, também nem pensar. A princípio, podem parecer costumes tirânicos, mas o islamismo é fortemente baseado em valores como o altruísmo e o respeito ao próximo, com mensagens que pregam o amor e o autoconhecimento para lutar contra os demônios internos – aqueles que fazem o ser humano pecar. “O islã acredita que tudo no mundo é feito por Alá (Deus), Ele é o único guia dos homens, então a política não pode ser separada da religião. E, segundo as normas deles, demonstrações de afeto fazem mais parte do hábito privado. Seja qual for a forma de carinho, até segurar as mãos, é proibido em público. Demonstrações carnais, qualquer coisa que provoque luxúria, é pecado”, explica a cientista política.
Giovani conta já ter se deparado com uma situação delicada neste sentido. “Quando trabalhava em outra emissora, o Floripa Esporte Clube foi disputar o Mundial de Vôlei em Doha. A namorada de um dos atletas se aproximou da grade e o beijou, e queriam levá-los presos. Foi uma confusão para desfazer a situação. Acho que não vai ser fácil controlar todo mundo lá na Copa”. De fato, são muitas as tradições as quais os turistas devem ficar atentos.
Normas de vestimenta, como mulheres usarem véus e túnicas – em muitos locais a burca – serão mais flexíveis na ocasião, mas é importante evitar roupas justas e que mostram muita pele. Também é proibido fumar e consumir carne de porco. Tirar a camisa, fazer algazarra e sair encostando em qualquer um também não vai ser visto com bons olhos. “O problema é como os estrangeiros vão se portar. Imagine alguém azarar ou tentar beijar alguma mulher. É perigoso porque, além de ser assédio, ela vai ser acusada de adultério e é quem vai sofrer com duras punições. Isso pode dar problemas internacionais, inclusive”, reforça Yasmin, destacando que direitos das mulheres também são um ponto deficitário na legislação.
Apesar das inúmeras e sérias situações envolvendo direitos humanos, esta é a oportunidade que o Qatar tem para mostrar ao mundo o que tem de melhor em cultura e economia. E, quem sabe, por que não abrir-se à diversidade e a novas visões acerca de seus costumes? O que Yasmin pontua é que, apesar das duras punições a quem ousar sair dos ditames do islamismo e da Sharia, o cristianismo também foi muito cruel no passado – lembrando as torturas durante a Inquisição, por exemplo – e passou por transformações. “Assim como queremos que respeitem nossa cultura e nossas regras do Ocidente, eles querem o mesmo em relação à cultura Oriental. Tem suas problemáticas, mas é o mundo que vivemos, um mundo que precisamos tentar entender para desconstruir e reconstruir”, finaliza a cientista política.
Fernando Bortoluzzi