O Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+ coloca em pauta discussões pelo fim da homofobia e maior igualdade de direitos
Celebrado nesta quarta-feira (28), o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+ é a oportunidade de pessoas, entidades, empresas e administração pública de entrarem no debate e se engajarem por maiores avanços no respeito às diferenças, a inclusão de populações marginalizadas, a igualdade de direitos e a liberdade para viver com dignidade. Muitas pessoas confundem as reivindicações da pauta da diversidade como “querer ter mais direitos do que outros cidadãos”, quando na verdade, a luta é apenas pela efetiva igualdade de direitos para todos cidadãos, independente da pessoa pela qual ele se atrai ou como se identifica perante a sociedade.
"Todos estes aspectos da realidade mostram que as celebrações são uma resposta à opressão, e não uma comemoração em si."
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A começar pelo direito mais básico de todos: a vida. O relatório divulgado anualmente desde 2020 pelo Observatório de Mortes e Violências contra LBGTI+ no Brasil traz o triste dado de que, em 2022, pelo menos 273 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais morreram de forma violenta no País, sendo 228 assassinatos, 30 suicídios e 15 outras causas. Os dados correspondem a uma morte a cada 35 horas. Dentro desta população, as mais vulneráveis são as pessoas travestis e transsexuais – aquelas que não se identificam com o sexo biológico designado quando nasceram, que correspondem a 61% dessas mortes.
Se em um contexto em que o próprio direito de viver é violado, qual é a real situação dos demais direitos das pessoas que superam a média de expectativa de vida, que no caso de mulheres trans é de apenas 35 anos? Para ter um panorama geral e atual de alguns pontos fundamentais da sociedade civil, a Flash Vip conversou com a Dra. Rubi Iara Garcia Vieira, professora de sociologia da Universidade Federal da Fronteira Sul. Ela desenvolve pesquisas sobre a produção e compartilhamento de conhecimento em Ciências Sociais através da arte da performance, e coordena o grupo de estudos transgêneres, que neste ano se dedica ao estudo da cisgeneridade e da experiência de opressão das pessoas transgêneras no sistema educacional.
Rubi: Apesar de, nos últimos pleitos, ter aumentado o número de representações da população LGBTQIA+, tanto nos poderes Executivos quanto nos Legislativos federal, municipal e estadual, é difícil pensarmos em mudanças efetivas na legislação no que se refere à defesa dos direitos dessa população. Vemos algumas representações na política municipal desde os anos 1990 e 2000, mas há casos emblemáticos que demonstram a vulnerabilidade dessa presença na política, como é o caso da então vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, assumidamente bissexual, assassinada em 2018 em um caso que ainda não há esclarecimento.
Casos de ameaça de morte são bastante comuns. As atuais deputadas federais Duda Salabert (PDT-MG) e Erika Hilton (PSOL-SP) têm recebido e denunciado ameaças constantes. É um contexto bastante paradoxal, uma vez que o aumento dessas representações, sobretudo a partir da década de 2010, vai demonstrar a demanda da população de ver seus representantes no Executivo e no Legislativo, mas que não necessariamente se revertem em uma mudança da política de reconhecimento e atendimento dos direitos da população LGBTQIA+.
Rubi: Acho que tivemos um aumento de personagens na TV com uma outra visão sobre, assim como temos na internet há mais tempo a presença da representatividade LGBTQIA+ nos próprios termos dessas pessoas, quando trabalham de forma autônoma. O que presenciamos na televisão é que, assim como o mercado de maneira geral, visa atender aquilo que os consumidores se sentem reconhecidos. Digo isso porque a TV funciona como uma empresa que vende um serviço. Inclusive, se mantém através da publicidade de produtos, assistir aos programas é uma necessidade econômica. Entretanto, essa representatividade é midiatizada por uma lógica mercadológica, porque de certa maneira há um esvaziamento do que poderíamos ter como uma força direcionada para a real reivindicação de direitos. Uma pergunta que devemos fazer é: como é que o consumo de bens com o qual nos identificamos como consumidores contribui para fazer valer uma melhoria nas condições de vida da população LGBTQIA+ no âmbito das políticas públicas?
Rubi: Os passos lentos das mudanças nas políticas, tanto na elaboração quanto na interpretação das leis que estão vigentes, se exemplificam com o caso do uso do nome social. Destaco o Decreto Federal de 2016 que regulamenta o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais na Administração Pública Federal. Essas pessoas podem agora reivindicar o uso de seu nome social em qualquer instituição federal.
Temos também uma resolução de 2018 do Conselho Nacional de Educação que define o uso do nome social nos registros escolares, restrito a maiores de 16 anos, desde que tenha autorização expressa dos pais ou responsáveis. Essa resolução contempla uma leitura do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas é restritiva, uma vez que possibilita que a discriminação que jovens possam estar sofrendo no âmbito familiar se formalize no âmbito escolar ao não considerar a sua autonomia na busca por dignidade humana.
Rubi: Um dos principais aspectos a considerar é a forma como a população transgênero é atendida e recepcionada dentro dos espaços de cuidado à saúde, uma vez que a própria noção de cisgeneridade, ou seja, a redução de gênero/sexo a um binarismo vinculado às diferenciações entre pênis e vagina - que faz parte da formação da maioria dos profissionais da saúde - impede a compreensão das nossas existências enquanto pessoas transgêneras. No ponto de vista da formação, que também está em mudança, no geral, o atual corpo de profissionais da saúde tende a fazer uma leitura que desconsidera a natureza das transgeneridades e as percebam como um desvio psicológico e patológico.
Rubi: Aqui eu gostaria de mencionar o artigo publicado em 2019 na revista científica Sociedade e Cultura, que relata os resultados de uma pesquisa sobre pessoas trans no mercado de trabalho, realizada pelos professores Silvana Marinho e Guilherme Silva de Almeida, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entrevistas feitas com trabalhadores apresentam o que seria a degradação do trabalho dentro de um ambiente formal. Por exemplo, o caso de um professor transgênero de uma escola pública municipal, que se viu obrigado a mudar de função para não lidar diretamente com os alunos. O profissional era qualificado para lidar diretamente com o público da escola e foi obrigado a mudar de função para que não fosse visto. É uma forma de degradação do trabalho, na medida em que ele se candidatou e foi aprovado para uma função dentro da escola, que não pôde ser exercida em por conta da transfobia dentro do espaço de trabalho.
Outra entrevista feita com uma mulher transsexual, profissional de telemarketing, apresenta a experiência de lidar com o preconceito e a discriminação dentro do mercado de trabalho através da própria produtividade exaustiva para alcançar suas metas. Os pesquisadores abordam o excesso de produtividade ao qual a pessoa trans se submete para mostrar aos colegas e ao empregador que é uma pessoa suficientemente competente para a atividade, passando pelo desgaste emocional de considerar que somente através desta exaustão é que vai ser capaz de mostrar o seu valor.
Trago também o dossiê “A Geografia dos Corpos Trans”, realizado em 2016 pela Rede Nacional de Pessoas Trans, que apresenta o dado de que apenas 10% da população transsexual está no mercado de trabalho formal, sendo que 90% se encontra na informalidade e na prostituição devido ao preconceito. A prostituição é resultado da expulsão de pessoas trans e travestis dos seus lares e da escola. Neste contexto, a única possibilidade de se manter materialmente é através da venda do próprio corpo. É uma realidade infelizmente muito presente e que expressa justamente a fase mais deletéria do mercado de trabalho, em que o preconceito, tanto na ocupação quanto no âmbito familiar, empurra essas pessoas para o caminho da prostituição.
O caminho da informalidade começa com o dilema de qual nome incluir no currículo profissional. O processo de transgenerização envolve o uso de nomes preferenciais, a mudança no cartório e o uso de nome social. Esse trâmite é necessário para que o sistema formal de trabalho reconheça sua identidade de gênero. No contexto em que esses procedimentos não são realizados, a escolha das pessoas trans vai se voltar para trabalhos informais que não requerem a alteração do registro.
Rubi: As pesquisas acadêmicas envolvendo a temática têm crescido bastante na última década, com destaque para aquelas produzidas pela própria população LGBTQIA+. São pessoas que realizam pesquisas sobre a sua própria realidade, então é um fenômeno relevante não apenas do ponto de vista científico, mas também do social. Esse olhar relacionado ao posicionamento sobre determinado tema está sempre presente, não apenas nas Ciências Humanas, mas nas Ciências Exatas, Biológicas, nas escolhas do que pesquisar, que são sempre subjetivas, sempre produzem conhecimento na medida que você considera essa subjetividade atuando nessa produção.
Rubi: Precisamos considerar o aumento de legisladores no âmbito municipal, estadual e federal, assim como o ativismo artístico LGBTQIA+ como aspectos positivos que indicam que ainda há esperança de que a discriminação contra essa população, do desprezo ao assassinato, possa diminuir na família, na escola e no trabalho.
Entretanto, ainda é pouco considerando as violências vividas pela população nestes espaços, inclusive nos legislativos. Os números da violência contra a população LGBTQIA+ no País, a evasão escolar, a sujeição a condições precárias no mercado de trabalho, a inexistência de serviços especializados na saúde, o atendimento e o entendimento precário sobretudo às pessoas transgêneras. Todos estes aspectos da realidade mostram que as celebrações são uma resposta à opressão, e não uma comemoração em si.
Fernando Bortoluzzi
Jornalista e explorador em busca de expansão e conexão.