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01/09/2023 cultura

Perdidas no tempo

Pesquisadora chapecoense desvenda histórias escondidas de quatro bailarinas que revolucionaram a dança clássica. O Projeto Oriri vem para encontrar novos pontos de vista

Por Ionara Virmes*


De acordo com o Dicionário Priberam, “baderna” é uma “situação de grande confusão ou desordem; bagunça”. Mas, para a pesquisadora Bruna Boita, esse significado é apenas um ponto de vista. 

Maria Baderna foi uma ilustre bailarina italiana que veio para o Brasil, no século XIX, deixar a sua marca. Ainda na Itália, teve aulas com Carlo Blasis, um dos maiores nomes da época, que incentivava suas alunas a misturarem o ballet clássico com outras técnicas de dança e foi o que Baderna fez. Ao vir para o Brasil, a bailarina foi contratada pelo Theatro São Pedro de Alcântara e, por seu nome na Europa, recebia um dos maiores salários para artistas na época e era considerada sinônimo para “elegância”.

Seus fãs, os “baderneiros”, não se contentavam em apenas aplaudir, batiam os pés e faziam muito barulho. Mas seu nome começou a realmente receber outro significado durante uma turnê ao Recife, onde, após muito contato com a cultura africana, decide misturar o lundu, umbigada e batuque com o balé. A elite da época ficou abalada, considerou como um insulto. Junto a nova caracterização, a adoração dos jovens rebeldes, “baderna” virou sinônimo de bagunça.


Clique aqui para ver as ilustrações de Maria Baderna.


São histórias como esta que nos fazem refletir: quantas outras deixamos de conhecer pelo passar do tempo? É isso que busca saber a chapecoense Bruna, no Projeto Oriri. Oriri, do latim “origem”, procura histórias escondidas de pessoas que, de alguma forma, mudaram a trajetória até a sociedade contemporânea. A pesquisa foi contemplada pelo Prêmio Elisabete Anderle de Apoio à Cultura de 2022, executado com recursos do Governo do Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura (Processo FCC 2920 / 2022).

Bailarina desde que se apaixonou por Pliés e Adagios, Bruna também é Produtora Audiovisual e iniciou suas pesquisas após descobrir a história de Hedy Lammar. Uma atriz conhecida mundialmente por sua beleza, até mesmo considerada uma das mulheres mais lindas do mundo, mas completamente esquecida por sua invenção: a tecnologia que possibilitou o surgimento do wi-fi. Sua primeira parada foi a dança, presente em sua trajetória.

“Alguns anos atrás, comecei a pesquisar sobre a história da dança durante a faculdade e percebi que nunca tinha estudado sobre uma mulher que fosse coreógrafa antes do século XX ou dentro do ballet, e passei a vida inteira dançando. Existe nas outras áreas um movimento de resgatar essas histórias de mulheres. E aí fui pesquisar e encontrei revistas e artigos científicos que exploravam a vida de algumas mulheres que criaram durante o século XVIII e XIX, que era justamente um período que existia ballet clássico e eu só conhecia nomes masculinos. Compilei essas informações e surgiu a oportunidade de me inscrever no edital para compartilhar esses conhecimentos com o mundo”.

Françoise Prévost, Marie Sallé, Thérèse Elssler e Maria Baderna foram as bailarinas escolhidas para serem apresentadas ao público. Cada uma com uma história de revolução apagada pelo tempo. De acordo com Bruna, a mulher no ballet é vista como uma intérprete, quem brilha no palco, dá vida à obra que um homem pensou. E quando avaliamos obras como Lago dos Cisnes e O Quebra-Nozes, é possível entender a afirmação da pesquisadora; afinal, em cima do palco a dança é puramente feminina, mas quem realmente é lembrado por sua criação são homens.


TRAZIDAS DO PASSADO

Nesse sentido, conhecemos Françoise Prévost. Uma moça de origem humilde que teve a oportunidade de começar a dançar em uma época em que o feito era apenas permitido pela realeza. Sua dança tinha o poder de emocionar qualquer cidadão que a contemplasse, isso porque seus movimentos eram feitos com significado. Cada gesto tinha um motivo, seus trajes em cima do palco também buscavam transmitir todos seus sentimentos, desde a tristeza  à extrema alegria. Hoje vemos essas características na dança contemporânea e teatros musicais. 

Mesmo sendo responsável por abrir um vasto caminho para as mulheres na dança, o legado de Françoise foi esquecido, de modo que apenas dois retratos da artista foram encontrados. O terceiro foi feito exclusivamente para o Projeto Oriri. Aurieli Adam, ilustradora e designer de Chapecó, foi a artista responsável por todo o projeto gráfico e conta que se baseou na moda da época e nos retratos encontrados de cada bailarina.

“Para cada material foi preciso parar e buscar ideias, a identidade visual foi a primeira a ser desenvolvida, busquei movimentos das épocas e tentei unificar com algo atual também, afinal é a história sendo contada com a perspectiva de hoje. A ID visual foi guia para os outros materiais do projeto, por exemplo, nas ilustrações, olhei muito para as obras que retratavam as coreógrafas, mas desenhei seguindo o visual proposto para o Oriri”, relata.


Clique aqui para ver as ilustrações de Françoise.


Aurieli ainda ressalta que a pesquisa de Bruna foi excelente, de modo a proporcionar grande imersão no assunto. E aponta, ainda, que de todas as bailarinas, Françoise foi a de maior dificuldade na reprodução por conta da escassez de registros da artista. Para sua produção, misturou as duas pinturas encontradas com sua própria pesquisa a respeito da moda e dança da época. “Mostrar os grandes feitos dessas quatro mulheres, que além de ótimas bailarinas, revolucionaram a dança e a época que viveram foi, definitivamente, a principal importância em participar do Oriri”.

Apesar de não ser bailarina e ter tido o contato com a dança clássica apenas na infância, Auri aceitou o desafio de participar desta valsa e, em conjunto com o produtor audiovisual Donnovan Ferreira, devolveram os movimentos para as quatro mulheres. Para Donnovan, participar do Projeto foi um processo de estudo sobre história da dança, de modo a deixar sua masculinidade de lado e entender como é difícil para as mulheres se posicionarem. 

“Achei, na minha ignorância, que seria desconstruído, e não, é um universo bem conservador e por conta disso vemos os mesmos passos sendo repetidos. O trabalho da Bruna traz uma denúncia daquela época, que colocava as bailarinas em situação de assédio e abuso. Em relação à parte técnica, precisei entender os passos da bailarina para reproduzir eles na animação. O mais importante do projeto, na minha percepção, é essa continuidade de abraçar várias frentes. Esse foi o primeiro passo, estudar sobre as bailarinas, mas os próximos passos seguem outras áreas, como a música”, ressalta.

Para a animação, todo cuidado foi necessário, afinal cada época apresentava uma regra diferente no modo de dançar. Bruna conta que “em determinado período era considerado vulgar a bailarina colocar as mãos acima da cabeça na dança, por exemplo. Em alguns casos, não existia sapatilha de ponta. O vestido do caimento era diferente. Tudo isso foi levado em consideração na hora de animar”.  

Cada história é única e traz uma visão nova sobre o que conhecemos como a história do ballet. Vale a pena conferir o e-book e conhecer a fundo cada uma delas. 


DADOS DO ORIRI



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  • 75 envios do e-book para Escolas de Dança, Universidades e Secretarias de Educação e Cultura
  • 96 acessos ao e-book
Fonte: Projeto Oriri


NA COXIA

Para saciar as mentes curiosas e fomentar o estudo cultural a respeito da dança, o e-book foi enviado para as Secretarias de Educação de cidades da região Oeste, escolas de dança e Universidades. Pela riqueza de informações, pretende-se que em algum momento torne-se um material pedagógico. Donnovan ainda acrescenta que a ideia veio para trazer a atenção para muitas histórias distorcidas e recontá-las sob nova perspectiva. “Como por exemplo, a Sallé, que revolucionou a dança com novas metodologias, coletadas pelo Noverre e publicadas. Noverre é referência de inovação no ballet, mas poucas pessoas sabem que as ideias não são dele, ele só se apossou da ideia de outras mulheres”.

Uma das escolas de dança a receber o material foi o Centro de Artes Paola Zonta, e lá as descobertas da pesquisa já estão sendo utilizadas. Tammy Gehlen Signore é sócia-proprietária e professora do Centro, mas também pesquisa sobre dança, gênero e educação, e sua dissertação de mestrado foi utilizada como base para o Projeto Oriri.


“A Bruna esteve comigo como aluna de ballet de 2012 a 2018. Em 2019, ela me auxiliou com a captação das imagens e som das entrevistas para minha dissertação, ali vi que ela se apaixonou pelas questões de gênero. Então começamos a falar mais sobre questões teóricas, fiz algumas indicações de leituras, mas muita coisa ela mesma foi atrás sozinha. Ela, assim como eu, ama a dança clássica, e viu fora do palco uma forma de continuar nutrindo este amor: pelas pesquisas. Hoje vejo ela trilhando este lindo caminho, fico muito feliz, mas especialmente grata, por ter contribuído para isso”, conta.

Em suas aulas, procura instruir seus estudantes a olharem para as diversas questões de gêneros em sala. “Hoje não podemos mais ter em sala de aula a mesma postura e conhecimento de 10, 15 ou 20 anos atrás.  A sociedade e o mundo mudaram, e trazer questões do passado para entendermos o como chegamos até aqui é primordial para darmos os próximos passos de forma consciente e consistente”.

Relembrar aquelas esquecidas pelo tempo e lutar por um espaço igualitário para todos é essencial, e disso os estudantes de Tammy sabem muito bem. Agora é sua vez! Que tal viajar até épocas distantes e se deixar levar pela balada da Ópera de Paris neste Dia da Bailarina?


Créditos Ilustrações: Aurieli Adam/Projeto Oriri
*Estagiária de Jornalismo sob supervisão de Carol Bonamigo

AUTORA

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Revista Flash Vip, contando histórias desde 2003.
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