De tradição secular a símbolo de hospitalidade e troca, chimarrão conquista apreciadores com rituais próprios e benefícios à saúde
Desde que se conhece por gente, Kaliu tem contato com o chimarrão. Criado em Chapecó, em sua infância morou com os avós, que sempre tiveram o hábito de acordar cedo. Ouvia o rádio tocando, a lenha sendo lascada em meio à cozinha, as panelas sendo mexidas, e acabava despertando.
Seus avós têm o costume de matear já no início da manhã. Certa vez, o então curioso guri pediu o que estavam tomando, e como aquilo era feito. A avó o ensinou a preparar o tradicional chimarrão, a temperatura adequada da água e o jeito correto de matear. “O chimarrão está presente na minha família há um bom tempo. Meus avós, mãe e tios sempre tomaram. Lembro muito de quando eu era criança, meus avós tomando, a vó com as amigas reunidas para colocar o papo em dia no final da tarde, ou até nos finais de semana. Quando ia ao baile, estava sempre com a cuia na mão”, recorda com carinho.
Kaliu Lazarotto tem 24 anos, mora sozinho e não perdeu o hábito de acordar cedo. Já não é preciso o barulho do rádio e das panelas, desperta antes mesmo do sol dar as caras. Faz questão de acordar às cinco da manhã, preparar a cuia e esvaziar uma térmica mateando. Para ele, o chimarrão é ótimo para aproximar as pessoas e socializar. Mas sozinho em casa já é diferente. É oportunidade para refletir, se aquecer, pensar nos problemas, e até mesmo em soluções. “Na hora que estou criando algo e estou estagnado, dou um tempo para ir fazer um chimarrão, tomo umas duas, três cuias, volto a sentar em frente do ao computador e parece que a ideia flui”, conta o produtor audiovisual.
Para muitas pessoas, o chimarrão é sinônimo de hospitalidade. Nada melhor do que uma boa roda de conversa acompanhada de um mate amargo – ou doce, para os que preferem. Mas houve um bom tempo em que este hábito de passar a cuia teve que ser deixado de lado, por conta da contaminação do coronavírus, principalmente nos dois últimos anos. Mesmo com o decair da pandemia, ainda é recomendado que não se compartilhe a cuia, para prevenir a infecção por esta e outras doenças.
Entretanto, este não foi um problema para Kaliu. Uma porque está acostumado a tomar sozinho, e outra porque no auge da pandemia de Covid-19 estava morando em uma cidade litorânea, e como ele mesmo diz, era difícil encontrar alguém com o hábito de tomar chimarrão por aquelas bandas.
Walter Antonio Roman Junior, professor dos cursos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Unochapecó, explica que o chimarrão é um legado deixado pelas culturas indígenas, que foi posteriormente transmitido para os jesuítas e imigrantes europeus na América do Sul. “O naturalista francês Auguste de Saint Hilaire foi quem classificou botanicamente o vegetal, por volta de 1820, em sua passagem pelo Sul do Brasil. Na oportunidade, o estudioso enfatizou o costume de socializar o preparado da planta, utilizando as folhas secas e água morna, sorvida por um canudo de taquara”, explica.
Saint Hilaire descreve em sua obra Viagem ao Rio Grande do Sul a presença tradicional e social do chimarrão nas comunidades que visitou: “O uso dessa bebida é geral aqui: toma-se mate no instante em que se acorda e, depois, várias vezes durante o dia. A chaleira cheia de água quente está sempre ao fogo e, logo que um estranho entre na casa, oferecem-lhe mate imediatamente”.
É inegável que cada pessoa experimenta o chimarrão de determinada maneira. Para Kaliu, por exemplo, a bebida lhe dá uma sensação de conforto – “parece que o estresse sai, fico menos tenso, relaxado”. Já em outras pessoas, o organismo reage de forma diferente às propriedades da erva-mate.
O professor Walter explica que a erva-mate é conhecida caracteristicamente por seu efeito estimulante físico e mental, capaz de promover atividades benéficas contra o cansaço. “Isso acontece devido às elevadas concentrações de metilxantinas na planta. A cafeína, por exemplo, além de estimulante, incrementa a vigília e a concentração. Já a teobromina pode ser responsável pela regulação do humor. Contudo, principalmente a sensação de bem-estar depende da sensibilização de cada indivíduo. Dessa forma, em maior ou menor grau, as pessoas podem relatar uma sensação de relaxamento e até mesmo diminuição do estresse”, explica.
Mas ainda há muitos outros benefícios que a Ilex paraguariensis (erva-mate) pode proporcionar à nossa saúde. O Pós-Doutor em Ciências Farmacêuticas ressalta a presença das vitaminas B1, B2, B6, C, E e D, além de sais minerais indispensáveis para o bom funcionamento do nosso organismo. Ainda, a erva apresenta em sua composição substâncias que podem auxiliar no funcionamento do sistema digestório, reduzir as taxas do colesterol e auxiliar na antioxidação, o que pode ter efeitos positivos no sistema cardiovascular e no controle da glicemia.
Entretanto, tudo o que comemos e bebemos deve ser apreciado com moderação. “Se consumido em excesso e repetidamente, o chimarrão pode sim fazer mal à saúde. A cafeína presente em grande concentração pode, por exemplo, causar irritabilidade, insônia, ansiedade e até mesmo desconfortos gastrointestinais. Além disso, a água em temperatura acima de 70 °C pode provocar lesões na boca, garganta e esôfago, contribuindo para o surgimento de doenças mais graves”, aponta Walter. Segundo ele, não existe um consenso sobre o limite de chimarrão a ser consumido por dia para evitar efeitos prejudiciais, mas vários profissionais da saúde destacam que o ideal é de seis a no máximo 10 cuias por dia.
Por fim, para uma boa apreciação do hábito do mate, tirando bom proveito de seus efeitos benéficos à saúde, o farmacêutico deixa algumas dicas para melhorar ainda mais o mate nosso de cada dia:
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