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19/05/2022 cultura

O arquétipo da “mulher na geladeira”

Recurso narrativo utiliza mulheres como instrumento de motivação em histórias masculinas

Não é difícil encontrar um filme que apresente a seguinte sequência de acontecimentos: mulher morre ou é agredida de alguma forma, homem passa o tempo todo se vingando. Na verdade, isso é tão comum que tem até um nome: “colocar mulheres na geladeira”.

Esse termo foi criado pela quadrinista Gail Simone, autora de inúmeras histórias em quadrinhos, incluindo edições de Aves de Rapina e Deadpool. Em 1994, ao ler a história 54 do Lanterna Verde, na qual a namorada do herói, Alexandra DeWitt, é morta pelo vilão Major Force e colocada, literalmente, dentro de uma geladeira, Gail percebeu que aquela não era a primeira vez que ela se deparava com a situação. Era comum ver mulheres sendo mortas e agredidas, ou perdendo seus poderes nas páginas dos quadrinhos, por nenhum motivo além de mover o arco do protagonista homem. Apesar do termo ter surgido nos quadrinhos, esse padrão é comum no cinema, principalmente de Hollywood.


Edição #54 dos quadrinhos do Lanterna Verde


Para Daniela Farina, roteirista e diretora na produtora Três Quadros e professora do curso de Produção Audiovisual da Unochapecó, o congelamento “é uma repetição de padrões que vêm de uma sociedade patriarcal, não é algo que existe apenas no cinema, mas uma reprodução que é feita de uma leitura de sociedade como um todo”.

Seguindo a descrição de Gail, a mulher que é colocada na geladeira pode morrer logo no início, ou até mesmo já começar morta, e o leitor ou espectador nunca a ver em cena, ou vê-la como um fantasma ou uma memória de tudo que era puro e bonito que foi tirado do homem. Nem sempre esse “congelamento” acontece através da morte, uma personagem que sofre uma violência, muitas vezes sexual, também pode ser considerada.

A produção pode apresentar o evento que insere a mulher nesse arquétipo como uma falha direta do protagonista em protegê-la, logo apresenta isso como uma falha na sua masculinidade.

Matar alguém importante para o herói da história é um atalho, aumenta a gravidade dos eventos e apresenta o homem como uma alma torturada e digna de simpatia. O congelamento também pode desencadear o “modo deus” do protagonista, a partir da tragédia ele passa por uma transformação e se torna uma versão melhorada de si mesmo.

São raras as vezes em que o público conhece algo sobre essa mulher, ela é um símbolo de inocência perdida, uma imagem de tudo que aquele homem perdeu. A partir disso, o espectador pode deixar passar e aceitar muitas atitudes questionáveis do protagonista, visto que elas são apresentadas como comportamento normal de um homem enlutado e de coração partido.

A estudante Emanoely Anzilieiro, apaixonada por filmes e histórias em quadrinhos, relata que demorou a perceber a presença do arquétipo nas produções que consumia desde a infância. “Eu particularmente, não via isso como algo incomum, já que na grande maioria dos conteúdos que consumi essa era a situação, e uma produção com mulheres em papéis narrativamente significativos era muito raro.”

O problema em colocar mulheres na geladeira tão frequentemente quanto vemos no cinema, é que este arquétipo representa a marginalização destas personagens femininas, que são reduzidas a objetos unidimensionais em uma história que sempre é sobre o homem. O seu lugar de vítima desta violência é retirado quando o homem é quem aparece sofrendo pelo acontecido.

Emanoely comenta a decepção em continuar encontrando “mulheres congeladas” até hoje. “É tão repetitivo, e quando mulheres assumem um papel mais relevante, com roteiros que exploram suas personagens como pessoas com algo a contar, a opinião pública é quase sempre ruim”.

Para Daniela a recorrência do congelamento reflete os bastidores de uma uma produção. “Ainda hoje nós temos muito mais homens como cabeças de equipe, o que faz com que esse padrão venha se repetindo. Com mais roteiristas, diretores e produtores executivos homens é natural que eles não vejam essa exploração pela qual as mulheres passam e essa forma de retratar as personagens femininas”.

Robert Wood, editor do Standout Books, cita o filme “John Wick” em sua análise de “mulheres na geladeira”. A vingança do protagonista é diretamente ligada a sua esposa, que está morta, porém ela não foi morta como meio de motivação, a morte do cachorro, um presente dela à John, é o que o motiva. Quando um papel tradicionalmente feito por uma mulher pode ser realizado por um cachorro ou um carro, aquela mulher não estava sendo tratada como uma pessoa, ou sua humanidade não era relevante. Robert ressalta que não é uma surpresa descobrir que a maioria das mulheres colocadas na geladeira são postas lá por autores homens.

Sem dúvidas, Gail Simone recebeu muitas respostas quando criou um site para listar as personagens vítimas do congelamento, a maioria dessas mensagens dizia que homens também sofriam nas histórias, eles também eram vítimas. Em resposta a essas críticas, nasceu outro arquétipo, o "homem morto descongelando”. John Bartol, visitante do site de Gail, escreveu que os homens morrem e são machucados em suas histórias, mas na maioria das vezes esse estado não chega a ser permanente e nem é usado como motivação de outro personagem, já que ele próprio é o protagonista. Esses homens voltam dos mortos ou se curam e transformam-se em versões melhores que antes.

Matar alguém importante é um recurso efetivo para iniciar uma história, mas é possível trabalhar em “complicar a geladeira” e deixar para trás versões que vêm mulheres apenas como acessórios de roteiro em uma narrativa predominantemente masculina, porque despedir-se de uma personagem tridimensional e importante ressoa e emociona muito mais.

Daniela ressalta a importância da presença feminina ocupando espaço nas equipes do audiovisual. “Sem sombra de dúvidas quanto mais mulheres nós tivermos por trás da câmera, mais esse olhar vai mudar. A gente fala de nós mesmas quando dirigimos ou roteirizamos, do nosso lugar de fala, tudo o que está na tela é um reflexo do que está na etapa de produção”, finaliza.


Texto: Milena Fidelis

AUTORA

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Revista Flash Vip, contando histórias desde 2003.
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