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03/07/2023 comportamento

Faces do ciclo puerperal materno

A ligação entre o amor e saúde maternal

Por Jaine Rodrigues*


Todos os seres humanos, independente de sexo, para nascer neste planeta precisam passar pelo mesmo lugar: o ventre feminino. No contexto maternal, existe a sensibilidade e o renascimento desta vivência. Mas, como qualquer nível de dualidade, também existem as faces mais obscuras e profundas. Nelas, encontramos cicatrizes internas dolorosas, cargas sociais e demais dificuldades. 

A vivência de mães são experiências pessoais e coletivas. Para o psiquiatra suíço, pai da psicologia analítica, Carl Jung, o arquétipo da mãe representa a ideia da nutrição, proteção, conforto, cuidado e segurança. Mas, esta mesma personalidade é muito desconfigurada, isto porque são impostos pesos sobre essas mães e em contraponto, há poucas compreensões coerentes relacionadas ao que se passa no íntimo feminino interior, principalmente durante a gestação e pós-gestação.


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A mãe e doula, Lucine de Bona, destaca: “Às vezes, até brinco, nasce uma mãe, nasce uma culpa. Seja culpa por não conseguir amamentar, por ter entrado em trabalho de parto e não se sentir preparada, culpa quando o bebê chora… Tudo isso porque existe essa romantização da maternidade que alimenta a ideia da mulher, do mito do amor materno para exercer este papel sem grandes esforços”.

Lucine, na sua experiência prática após seu parto, indagou-se ao perceber-se no mundo materno. Especialmente, ao que se refere ao amor maternal. Ela conta que, ao olhar seu filho, se questionou se realmente amava aquele bebê. “A partir do momento que o vi no meu colo, não senti aquele amor de ‘ai meu Deus, como eu amo este bebê'. Não. Foi algo que foi sendo construído aos poucos, com convívio, dedicação, através da forma como ele interagia comigo”, conta. 

Para Lucine, quando duas pessoas se conhecem, dificilmente irão sentir o amor imediato, mesmo o amor de mãe para filho. “Hoje, posso dizer que eu amo ele mais que tudo na minha vida. Mas, nos primeiros meses não foi assim, ainda mais no puerpério que a mulher passa, que a gente tem oscilação hormonal”, esclarece.

É importante ressaltar que o puerpério citado pode ser compreendido dentro do chamado “Ciclo Gravídico Puerperal”. Neste período, mudanças complexas acontecem no campo físico, mental e emocional das mulheres. Elas impactam o metabolismo, cérebro e o sistema de neuroplasticidade. Há reconstrução identitária, alterações no papel social, reajustes interpessoais e intrapsíquicos. 


O papel do amor-próprio da mãe na construção desta relação sentimental

Para a psicoterapeuta, Suzane Busatta Ignachewski, o amor materno pode não ser imediato, natural ou determinado por instintos biológicos. “Ele é construído. A mãe normalmente consegue, dependendo de como for a qualidade de vida psicológica dela, ter esse vínculo mais forte desde a gestação, mas também isso pode não acontecer nesse período. Pode ser que essa mãe, mesmo depois do nascimento, tenha dificuldade de sentir esse amor pelo filho e, aos poucos, conforme o tempo, ela vai desenvolvendo maior proximidade e consegue desenvolver este afeto e amor”, afirma. Ela também ressalta que, antigamente, não existia esta reflexão em torno do amor entre pais e filhos. Foi algo construído coletivamente. 


E, como estamos falando de amor, questiona-se: o amor-interno, como impacta nesta relação maternal?

Sem generalizações e determinações concretas, afinal, cada situação tem suas variáveis, especialmente no âmbito da psicologia. Se uma mãe não sente amor por si mesma ou não recebeu amor durante sua vida, não há como afirmar que ela não vai conseguir desenvolver este sentimento por seres gerados em seu ventre. Mas, segundo a psicoterapeuta, é correto afirmar que, quanto mais uma pessoa o cultiva junto da autoestima, mais fácil é florescer vínculos afetivos com outras pessoas. “Uma mãe que talvez não tenha o desenvolvimento de amor-próprio, pode encontrar dificuldades, tanto para expressar, quanto para viver de fato o amor pelo seu filho”, destaca. Ou seja, quando existe esta falta, dificulta a capacidade da mãe em estabelecer uma ligação saudável, de acordo com suas limitações e compreensão do seu espaço e dos outros. 


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Como compreender instabilidades internas no pós-parto

Para ser possível aprofundar o entendimento e análise da experiência materna num contexto mais amplo, é pertinente relacionar estas faces amorosas, com a saúde psíquica e emocional materna. Afinal, em quadros debilitados, se torna mais complexo lidar com as mudanças maternas, assim como cultivar esses sentimentos dentro da estrutura familiar, especialmente na gestação e no pós-parto.

Segundo estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRG), a depressão pós-parto incide em 6,5% a 20% das mães. Considerando as alterações de humor do período pós-parto, existem duas apresentações tradicionais: uma mais leve e mais comum, chamada de Blues puerperal ou melancolia da maternidade, e a depressão pós-parto propriamente dita. Conforme a psicoterapeuta Suzane, o baby-blues ou blues puerperal é o mais comum. Esta afirmação relaciona-se com o estudo da American Pregnancy Association, o qual aponta que entre 70% a 80% das novas mães têm algum sentimento negativo ou alterações de humor após o nascimento do bebê. É claro, estes sentimentos e alterações, dizem respeito, normalmente às mães, não especificamente ao bebê. Os relatos de nossa reportagem dizem isto.

O baby-blues pode vir à tona a partir da inconstância de sentimentos, oscilação de humor, choro fácil, irritabilidade ou cansaço. Também pode haver alterações de apetite, peso e sono. Mas, segundo Suzane, esta é uma condição transitória e leve, facilmente normalizada. Em geral, se relaciona com questões hormonais, biológicas e psicológicas da adaptação. 

A mãe solo de três filhos, Marilde Espanhol, a partir de sua experiência, relata: “O pós-parto é um período de muitas dúvidas. Você tem o ser humaninho gerado dentro de você e parece que na barriga nada poderá acontecer. Mas aí o bebê nasce e ele está totalmente à mercê. Medos muito comuns fazem parte do dia a dia. Como a troca de fraldas, o alimento, o banho, o acalento”. 

Ela conta que a construção do amor intenso pelas filhas foi sentido no último período de gestação, após enfrentar suas dúvidas e medos. Marilde afirma que suas três gestações foram conturbadas. Em nenhuma sentiu o apoio do pai das crianças e sua família esteve pouco presente. Por estar sozinha com elas, percebeu que o sofrimento gerou apego. Mas reflete que cada uma apresentou especificidades. Para ela, o sentimento desenvolvido com a criança depende muito do que passou na gravidez. "A que eu mais sofri foi a que mais me apeguei”, declara. Esta gestação foi a última, quando o genitor a abandonou no 8º mês e ela teve que passar por tudo sozinha. 

Este caso pode ser compreendido como caso de baby-blues, porque a mãe sentiu com maior intensidade a dor de estar sozinha, especialmente no pós-parto. Ela conta que não buscou ajuda terapêutica ou psicológica, mas não acredita que sua situação seja caracterizada como depressão pós-parto. 


Quando o nível de instabilidade persiste

Na depressão pós-parto, estes sentimentos são muito parecidos, porém, a diferença é a intensidade e a frequência. A depressão puerperal é algo que vai se estender por mais tempo e, por isso, é necessária intervenção psicológica, medicamentosa ou não. Segundo dados da Fiocruz, 25% das mães de recém-nascidos no Brasil são diagnosticadas com a doença. Inclusive, cabe ressaltar como fator causador a pressão social materna.

Antônia* (nome fictício para preservar a privacidade da fonte) conta que sua depressão se estendeu por cerca de seis anos. Ela relata ter sido abusada na sua infância. E, quando engravidou de sua primeira filha, aos 19 anos, essas cicatrizes abertas somaram ao seu quadro psíquico-emocional. Durante a gravidez, Antônia passou por ameaça de aborto e, segundo suas próprias palavras, ela teve um parto "torturante, de 14 horas". Na primeira semana, teve mastite mamária (uma inflamação das glândulas mamárias que ocorre em mulheres em fase de aleitamento materno), e infecção nos pontos. “Para piorar, por volta dos 20 dias, surgiram os primeiros sintomas de depressão, quando tive uma crise de choro, onde não conseguia parar”, relembra.

Neste primeiro mês pós-parto, mesmo em um casamento, se viu sozinha. Conforme relata, tudo iniciou no dia em que ficou junto da bebê do meio-dia do sábado até o amanhecer de domingo. “A crise de choro começou porque a bebê chorava sem parar, tinha cólicas e eu não sabia o que fazer. Entrei em desespero. Longe de vizinhos, a quase um quilômetro, morando no meio do mato, sozinha com a bebê e não muito bem ainda, e uma noite muito fria... Ficamos eu e ela sem dormir a noite inteira e só chorando. Quando ele chegou, pela manhã, pegou a bebê dos meus braços e foi para o outro quarto da casa e disse que a filha era só dele e que se eu quisesse que fizesse outra... E dava risada, pois estava alcoolizado”, declara. No domingo, ficou o dia sem dormir e novamente seu marido estava longe. Estas situações se repetiram, mas a única opção era seguir. “Daí para frente passei por poucas e boas, mas graças a Deus tinha a minha companheirinha sempre junto comigo, graças a ela nunca tive coragem de fazer nenhuma besteira”, conta.

Antônia, buscou ajuda médica quando sua filha já tinha 1 ano e 6 meses. Ela relata que na época a doença era pouco conhecida como depressão. Ela chorava constantemente, se sentia desanimada, "andava igual a um zumbi" e não conseguia dormir. Começou com o tratamento medicamentoso e foi consultar com psicólogo, porém não conseguiu prosseguir. “Na primeira consulta, ele já exigiu que o marido também fosse. Mas ele não quis. Fui mais uma vez e não fui mais, porque o psicólogo disse que não adiantava eu ir sozinha. Fiz isso em mais dois profissionais, mas eles também exigiam a presença do marido. Como ele não foi em nenhum, desisti de todos”, descreve. 

Já que não conseguiu prosseguir com terapias psicológicas, Antônia decidiu buscar outras alternativas. Para se sentir melhor, se matriculou e terminou o Ensino Médio no Núcleo Avançado de Ensino Supletivo. Fez cursos de artesanato, culinária e informática. Com a medicação para depressão por quatro anos, adquiriu 30kg e continuava se sentindo mal. Quando decidiu parar com os fármacos, ainda junto do marido, engravidou da segunda filha. “Me deu ânimo para viver de novo, vendo a alegria da primeira filha em ter uma maninha, voltei a viver sem os remédios”. 

Após o nascimento da segunda filha, Antônia teve novamente recaídas, voltou com a medicação por um período e iniciou terapias em grupos. “Participei de vários encontros, isso me ajudou bastante, vendo que tinha pessoas com problemas bem piores do que os meus. Atualmente, ainda dá umas recaídas, às vezes, mas ergo a cabeça e fico mais forte, dizendo para mim mesma que estou curada”. Hoje, ela afirma que a vivência com as filhas a fortaleceram: “O que passou, passou, porque não existe amor maior do que temos pelos filhos”.

Antônia reflete a realidade de 22 anos atrás, onde a depressão era pouco conhecida e mulheres não podiam realizar consultas psicológicas sem a presença do marido. Possivelmente, na realidade atual, se ela tivesse tido o apoio psicológico teria lidado muito melhor com a situação. Ao mesmo tempo, também podemos pensar sobre como a ideia de que um casal deve permanecer “feliz para sempre” afetou essa vivência. Felizmente, ela conseguiu encontrar soluções para lidar com a situação, evidenciando sua força feminina. Mesmo que tenha demorado anos.


Observa-se, a cura exige tempo

É possível constatar que, de acordo com o quadro de cada mãe, a cura, ou seja, a solução destas dores internas, pode demorar para chegar. Taís Floss é mãe e relata buscar terapias até hoje, após o nascimento de sua filha em 2018. Logo após a vinda de sua filha, saiu do relacionamento com a figura paterna e até hoje é mãe-solo. Ela percebeu que a depressão como quadro mental/emocional iniciou anterior à gravidez. Mas nesta fase, o quadro interno ficou mais claro . “A depressão pós-parto começa muito antes. Percebi a depressão pela primeira vez no pós-parto, até então nem sabia o que era isso. Sempre estava satisfeita, resolvia. Mas no pós-parto isso não aconteceu. Estava com minha filha nos meus braços e o que sentia, além de uma tristeza muito profunda, era um vazio como se nada fizesse sentido e, ao mesmo tempo, o maior sentido da vida era a minha filha. Era uma dualidade muito grande”.

Neste momento, ela conta que buscava forças para viver por ela e pela filha e compreendeu que, pela falta de afeto por si mesma, este processo foi mais complexo. “A partir do momento que você não sente esta autoestima, este amor-próprio, é difícil viver por outra pessoa”, afirma.

O fato de não ter tido o pai da criança lhe dando suporte a afetou negativamente, pois já estava muito fragilizada. Ela lembra de momentos na amamentação, onde chorava muito. “O que sentia era muito mais intenso, coisas que fugiram do meu controle. No nascimento, a gente vive um luto porque há uma mudança. E percebi que não tinha resolvido nem as minhas questões ainda, então estou descobrindo muita coisa agora sobre mim”, destaca.

De acordo com Taís, ela segue buscando psicoterapias, medicinas indígenas e ferramentas de autoconhecimento. Hoje, sua filha tem 5 anos, mas ela sente que ainda não conseguiu alcançar 100% de sua cura, entre idas e vindas com medicações. “Já estou cansada, de estar cansada e tentar sair e não tenho mais forças, não consigo mais. O que sinto é que preciso de ajuda”, declara.

Por estes motivos, segundo a especialista em Terapia Cognitivo Comportamental na Infância e Adolescência, Carla Zeni, o pré-natal psicológico é importante, pois auxilia a desenvolver estratégias de como lidar com as transformações emocionais e psicológicas que a gravidez e o pós-parto podem trazer.


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Carga social refletida em ‘palpites’

Quando um pai, dentro da relação amorosa com a mãe, é negligente com seus filhos (as) e até mesmo com sua companheira, normalmente surgem poucos questionamentos em relação a sua conduta. E, lamentavelmente, dentro desta mesma reflexão, cabe salientar a pressão de que mesmo infeliz, a mulher deve permanecer no casamento “pelos filhos”. Tamanha incompreensão, pois, hoje, já é possível saber que as crianças absorvem o que é vivenciado no seio familiar, se a experiência for negativa, danos para todos os lados. Especialmente para as mães. A doula Lucine destaca o peso discrepante dividido entre as duas figuras parentais. "Quando um pai decide não conviver com a criança, normalmente é mais compreendido pela sociedade, pois paga a pensão e está tudo certo. Porém, a carga social é muito maior quando uma mãe faz o mesmo movimento. Porque a mãe dificilmente será dissociada do filho. Uma coisa que a mulher ouve quando está gestando ou no pós-parto é: palpite. Palpite de um lado e de outro”, avalia. 

Considerando as opiniões expressas, carregadas também de julgamento, questiona-se: estas cargas sociais podem afetar a relação da mãe e seus filhos (as)?

“Não digo que isso afete a capacidade de construção da relação afetiva e amorosa com o filho, mas influencia em como a mãe vai estar. Começa a ficar irritadiça, se estiver aborrecida já interfere no cuidado com o bebê,  tudo que a mãe sente, o bebê vai sentir também. Porque até, em média, três meses eles estão no período de exterogestação”, complementa a doula.

Em síntese, ser mãe é uma experiência única de cada mulher e buscar compreender a sua saúde psíquica e emocional é, basicamente, acolher a feminilidade existente. Ou seja, tudo isto diz respeito primeiramente à mãe, e não ao bebê. Não são evidenciados casos de depressão ou baby-blues por conta dos bebês, mas sim, das condições internas e externas da mãe. Por isto, como diz a mãe e doula Lucine: “não se cobre tanto, dê tempo ao tempo”. Ressalta-se aqui, o nível de informação disponível, assim como ferramentas para lidar com cada quadro psíquico-emocional. Redes de apoio, terapias e sessões de psicologia, por exemplo. É melhor viver, compreender a experiência, exatamente como ela é para cada mãe, consoante as diferenças e especificidades existentes. É sobre se questionar, se olhar no espelho e buscar compreender o que vê, o quê está incomodando, por quê? Qual tipo de ajuda tenho ao meu alcance? Pessoas amigas, familiares? Unidades de Saúde? Terapias? Ferramentas de autoconhecimento? 

As respostas chegarão de alguma maneira. Principalmente, para possibilitar uma melhor relação amorosa com filhos (as), compreendendo o amor-interno e sentimento construído. Assim, explorar as várias faces da vivência materna.


*Estagiária de jornalismo sob supervisão de Carol Bonamigo
Fotos: Unsplash

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Revista Flash Vip, contando histórias desde 2003.
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