Luta antiga e contínua.
Reportagem Diana Heinz
Entre 1580 e 1640, Portugal e Espanha viveram a chamada União Ibérica após a Guerra da Sucessão. Foi nessa época que Mariana Alcoforado, uma nobre portuguesa, foi enviada aos 11 anos para o convento Nossa Senhora da Conceição. Mais tarde, já adulta, a freira conheceu um homem a quem enviou cartas de amor. Ele era um oficial francês em serviço em Portugal, chamado Cavalheiro De Chamilly. As palavras de Mariana falam sobre solidão, ansiedade e amor, em um tempo onde tudo era proibido, principalmente quando envolvia mulheres e religião. Pouco tempo depois, as cartas de Mariana foram publicadas em um livro, expondo seus secretos sentimentos, sem sua permissão. Hoje, a obra chama-se Cartas Portuguesas e é considerada um clássico da literatura europeia. A história não conta o que ocorreu ou como sentiu-se Mariana depois de perceber que sua vida virou um livro francês. É comum na história da humanidade casos como esse, em que a vida íntima da mulher é desrespeitada e são explanadas situações contra a sua vontade ou até mesmo sem que ela saiba do fato.
Quatro séculos depois, a intimidade feminina perde o poder de segredo quando alguém que recebe ou se apropria indevidamente de fotos privadas, resolve compartilhá-las na internet. Dezenas, centenas e até milhares compartilham aquelas imagens ilegalmente, expondo a vítima a uma situação de vulnerabilidade. Em 2012, a atriz Carolina Dieckmann teve seu celular invadido e fotos íntimas suas foram divulgadas na rede. O caso repercutiu e, pouco tempo depois, o congresso aprovou a Lei 12.737/2012 que leva o nome da atriz, no intuito de punir aquele que cometer o mesmo tipo de crime com outras pessoas. Mas e quando as fotos foram enviadas? Foi por essa situação que Vitória* passou. Ela tinha cerca de 15 anos quando, em 2014, enviou fotografias pessoais para um menino de quase a mesma idade. As imagens foram compartilhadas no Snapchat, um aplicativo que mostrava imagens por poucos segundos e que caso fossem salvas, apareceria uma notificação. Porém, o rapaz utilizou outros recursos para armazenar as fotos de Vitória e depois de três ou quatro meses compartilhou o material. “Um dos momentos mais marcantes foi quando descobri que minhas fotos estavam espalhadas. Um amigo da mesma cidade do menino que tinha as imagens me chamou já em tom de julgamento. Ele disse: ‘eu não acredito que você fez isso’”, lembra. Sem entender do que ele falava, Vitória buscou saber quais fotografias eram aquelas. Como o aplicativo não salvava imagens na época, para ela aquilo não existia até então. Quando percebeu o que estava acontecendo, sentiu-se traída e envergonhada. “Foram vários momentos que a história voltou. Primeiro quando eu soube, depois quando meus amigos de onde morava souberam e, por fim, meses depois, quando minha mãe soube. Sofri calada e fingia na escola que nada daquilo estava acontecendo”, destaca.
Quando a mãe de Vitória passou a saber das fotos, levou a filha até a delegacia para iniciar um Boletim de Ocorrência contra o rapaz. Muitas testemunhas foram ouvidas e as versões indicavam a jovem como causadora da situação, o que a fez desistir do processo. Hoje, aos 23 anos, Vitória diz que se passasse por isso de novo, iria até o fim por seus direitos. Para o delegado da Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (DPCAMI) de Chapecó, Estevão Vieira Diniz Pinto, tanto compartilhar quanto roubar fotos íntimas de outrem é crime no Brasil. Segundo ele, na região de abrangência da DPCAMI de Chapecó, casos como o de Vitória são raramente registrados. O delegado diz que é comum mulheres vítimas de diferentes tipos de violência não registrarem o crime, o que não significa que não tenha acontecido e pior, muitas vezes a omissão as coloca em risco. “A exemplo da nossa maior demanda, que atualmente é a violência doméstica, hoje em situações mais extremas como feminicídio, mais de 90% dos casos nunca procuraram uma delegacia antes”, explica o delegado.
Só no ano passado, a DPCAMI de Chapecó registrou 2.279 boletins de ocorência envolvendo ameaça, lesão corporal, injúria, estupro, maus tratos, perseguição, importunação sexual, descumprimento de medidas protetivas de urgência, calúnia, difamação, entre outros. Em 2021, até o início de julho, foram 1.164 registros.

Vitória, que teve suas fotos vazadas em 2014, lembra de sentir culpa e acreditar que merecia tudo aquilo que estava acontecendo. Débora* esteve na mesma situação, conforme relatou sua amiga Andressa*. Chegou a enviar um áudio pedindo desculpas para uma de suas amigas, antes de falecer em um grave acidente de trânsito. Seu carro colidiu contra um caminhão na BR 282, em 2018. No mesmo dia, supostas fotos íntimas de Débora foram expostas no Instagram de uma mulher, que acusava a jovem de enviá-las para o seu marido. Diversas mensagens de ódio contra Débora, antes de sua morte, circularam nas redes sociais.
A psicóloga do Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) de Pinhalzinho, Keity Santoro, explica que quando esse tipo de imagens são vazadas, o que acontece é um impacto na estrutura emocional da pessoa, na linha de humilhação. “Atitudes como essa, geram uma desapropriação do próprio corpo, principalmente para a mulher que já vem com uma cultura do estupro, isso porque se perde o controle de onde aquela imagem pode chegar. É um abuso psicológico, que impossibilita e deixa evidente que os direitos sobre o corpo não são da pessoa”, afirma.
Keity diz que os impactos, as consequências e os traumas desses episódios na vida das vítimas são diversos. Alguns conseguem ressignificar essa violência e passam a ter mais autonomia. Contudo, outros se sentem culpados, sentem vergonha e nojo de si, podem desenvolver crises ansiosas, depressão, fobias, insegurança, persecutoriedade (sensação de ser perseguido), entre outros sintomas, até mesmo o suicídio. “No âmbito feminino, quando uma mulher é vítima de vazamentos de fotos, ela sofre três dores: a da traição da pessoa que compartilhou o conteúdo, a vergonha e as críticas da sociedade. Além disso, as vítimas desse tipo de crime são responsabilizadas pela maioria das pessoas, enquanto o agressor ainda é poupado pela sociedade. Para muitas mulheres, episódios como esses, podem deixar marcas para o resto da vida”, declara.
Uma das questões mais importantes que deve ser discutida, segundo a psicóloga, é que existe a prática criminosa que expõe a intimidade das pessoas sem o consentimento, mas o ato de enviar imagens de si não é crime. Para ela, a liberdade do envio de fotos íntimas deve ser respeitada, é um direito de todos. “Devemos buscar a criação de mais espaços de escuta e segurança embasados na educação sexual para as crianças e os adolescentes, buscando prevenir humilhações e práticas de violência psicológica”, explica.
A professora de antropologia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), Dra. Arlene Renk, explica que quem compartilha conteúdo íntimo de outra pessoa faz isso por interesse de algum recurso, por meio da chantagem, ou então utiliza a imagem feminina como posse, uma espécie de jogo, no qual mostrar as fotos assemelha-se à vanglorização. Para a antropóloga, a luta feminina pelo direito de propriedade ao próprio corpo é pré-histórica e atualmente uma das questões que mais prejudica essa visão é a associação do corpo feminino à sexualidade. “Há um mercado muito grande que se apropria da imagem das mulheres”, explica a professora de antropologia.
Angela* sabe o que é não se sentir dona do próprio corpo. Em 2011, morava em uma pequena cidade do Extremo Oeste de Santa Catarina e visitava Chapecó com as amigas quase todos os fins de semana. Em uma das ocasiões elas foram até uma festa onde Angela conheceu um rapaz. Eles saíram juntos após a festa e tiveram uma relação sexual. No fim do ato, o parceiro retirou o preservativo. Quando percebeu o que aconteceu houve uma briga entre os dois. Ela voltou para casa e esqueceu o fato por cerca de um mês, até o momento que soube que estava grávida. Angela não pretendia ser mãe, mas não teve a opção de escolher. Precisou procurar o rapaz, que arca até hoje apenas com a pensão mensal. Poucas vezes no ano encontra o filho que é criado pela mãe. Na época, quando soube da gravidez, Angela foi expulsa de casa pelo pai. Foi chamada de mãe solteira, termo que ecoa de forma negativa em sua memória. O que aconteceu com ela chama-se stealthing, que consiste na retirada do preservativo durante a relação sexual, sem o consentimento da outra pessoa. Desde 2015 o ato é considerado crime, Angela não sabia disso até a entrevista para essa reportagem.
Para Silvana Winckler, professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unochapecó, o problema está em situações em que a mulher perde o direito à dignidade sexual. Para ela, a legislação brasileira já pode ser considerada avançada, pois diversas leis garantem o direito feminino. O que falta, nesse sentido, é disseminar informações sobre a legislação e estrutura para que todas as mulheres possam lutar contra algo que as prejudique de forma física e psicológica. “A mulher tem o direito de usar o que bem entender, estar onde quiser, enviar fotos íntimas e viver sua vida de forma feliz. Punir as pessoas certas é que resolve, não culpar a vítima”, argumenta Silvana.
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Revista Flash Vip, contando histórias desde 2003.