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11/08/2020 papo cabeça

É preciso podar pela raíz

Segundo especialistas brasileiros, para a desigualdade racial ser combatida, antes de tudo, é preciso reconhecer que a população é, sim, racista.

Segundo especialistas brasileiros, para a desigualdade racial ser combatida, antes de tudo, é preciso reconhecer que a população é, sim, racista. A negligência cristalizada no núcleo da sociedade potencializa o racismo estrutural, compreendido como um processo cultural e sócio-histórico de reprodução de comportamentos racistas. por outro lado, o florescer de uma nova geração traz à luz novos direcionamentos sobre as questões raciais no mundo. Episódios como as manifestações pela morte do estadunidense George Floyd, o movimento Black Lives Matter (vida negras importam) e outras inúmeras iniciativas abrem precedentes para diferentes chaves de leitura sobre o futuro da população negra. E para falar sobre esses temas, profundamente pertinentes a toda sociedade, a fv convidou o designer gráfico Denis Cardoso, a enfermeira Debora Borges e a psicóloga e mestre em psicologia social Maria Célia Malaquias para uma conversa reflexiva e esclarecedora.


Denis. O racismo estrutural pode ser entendido como uma condição enfrentada pelas pessoas negras e pardas desde a Abolição da Escravatura, que, na verdade, aboliu a escravidão, mas até hoje condiciona o negro a papéis de pouca importância na sociedade. Somos a maior parte da população brasileira, cerca de 55%1, e mesmo assim precisamos lutar para sobreviver, mais do que viver. Como vocês interpretam isso?

Maria. Quando falamos de relações raciais no Brasil, falamos de toda a população brasileira. Não é uma questão do negro e da negra, é uma questão de todos nós. É importante nos darmos conta de que lugar estamos falando, para que possamos nos inquietar. Mesmo com a chamada abolição oficial e o fim da escravização do povo negro, ainda continuamos persistindo, resistindo e batalhando para uma libertação. E estamos no século XXI. Dentro e fora do consultório, eu continuo a me deparar com dores emocionais, angústias, tristezas, depressão e, em alguns casos, até de suicídio. Portanto, não podemos fingir que não vemos todos esses problemas. Pelo contrário, está explícito diante dos olhos de todos. E precisamos não somente observar o racismo, mas questionar o que podemos fazer a partir dessas atitudes.


Denis. O racismo estrutural também se reflete nas condições de trabalho. A renda média mensal de um branco, hoje, no Brasil, é por volta de R$2.796,002 e a renda média mensal de uma pessoa negra chega a R$1.608,00. E eu penso: quantas gerações vão nascer e morrer presenciando este dilema? Isto é, precisamos interromper esse paradigma. Imagino que esse cenário seja mais precário para mulheres negras.

Debora. Eu não tive tantos problemas em relação ao emprego. Como eu passei em um concurso público, a cobrança foi menor do que em vagas da iniciativa privada, onde a cobrança por estética e padrão é muito maior. No entanto, já passei por experiências nas quais pessoas atendidas por mim direcionavam a fala para os meus colegas, evitando conversar comigo. Mas eu penso que quem depende de resultados ou aparência sofre mais. Pelo fato de ser concursada, isso me dá certa segurança de ser quem eu sou, de usar meu cabelo com trança, meu cabelo com black, sem que eu seja repreendida.

Maria. Realmente é isso. Quem ganha mais é o homem branco, depois a mulher branca, depois homem negro e, por último, a mulher negra. E nós trabalhamos muito! Nós batalhamos tanto para conquistar o direito quanto a permanência no mercado de trabalho, porque, em geral, somos os últimos admitidos e os primeiros a serem demitidos. Certamente, se eu fosse uma mulher branca, com a mesma trajetória de luta, persistência e trabalho, estaria numa posição socioeconômica mais confortável do que tenho hoje e teria demorado menos tempo. Muitas pessoas acham que estamos reclamando, falando as mesmas coisas, que não mudamos o discurso. Primeiro, como vamos mudar a nossa fala, se a nossa realidade ainda é esta? E segundo, essa realidade não é conhecida nos bancos escolares. Em nenhuma etapa do ensino a história verdadeira do negro no Brasil é discutida, são raras as exceções, mas não estamos falando de exceções. Então, somos nós por nós, contando a nossa história. E para determinados cargos, negros e negras não são escolhidos, há um crivo no processo seletivo profundamente visível para nós. Em uma vaga de direção, por exemplo, por mais que o candidato negro tenha avançado no processo seletivo, algo “mágico” acontece e essa vaga, de repente, desaparece nas entrevistas finais.


Denis. Outro dado significativo é que 71% das pessoas mortas por assassinato são negras 3. É um absurdo! Certamente, tem alguma coisa muito errada, que precisa ser alterada urgentemente, porque as populações negras de hoje e do futuro precisam que o Brasil reaja e mude esse cenário.

Maria. Além do caso do George Floyd, nos Estados Unidos, poucos meses depois, aqui no Brasil, em São Paulo, uma mulher negra foi imobilizada por um policial militar, que pisou em seu pescoço. O mais surpreendente nessa cena terrível é que o impacto deste crime parece causar menos efeito na população brasileira do que o impacto do assassinato do Floyd — sem minimizar uma ou outra agressão. Nós, sim, sabemos o significado do pé ou do joelho no pescoço de um homem negro e de uma mulher negra. A gravidade dessa “naturalização” das violências contra a população negra provoca uma “acomodação” nas pessoas. Ou seja, a “coisificação” do corpo negro não existiu somente nas senzalas, permanece até hoje, em diferentes atitudes e ambientes. O corpo do negro ainda é tido somente como um corpo, como se não tivesse família, nem nome, nem RG, como se não tivesse ninguém por ele. Não somos uma democracia racial, ainda vivemos em um país racista e temos de nos envergonhar disso, nos indignar com isso.


Denis. Maria, você comentou sobre demorarmos para alcançar status ou espaços privilegiados na sociedade. E as pessoas brancas precisam compreender que quando falamos sobre isso, não estamos as taxando categoricamente como maldosas, queremos dizer que essas discussões envolvem todos os cidadãos e todas as cidadãs. É preciso reconhecer que violência e as desigualdades existem. Outro dado interessante é a presença dos negros no poder legislativo. Apenas 24,4% dos deputados federais, 28,9% dos deputados estaduais e 42% dos vereadores eleitos são negros4. Ou seja, não chegamos a ter uma representatividade expressiva da nossa população (55% da população brasileira é negra ou parda).

Maria. Eu sempre procuro conhecer bem os candidatos, sobretudo as candidatas negras e a posição partidária desses candidatos. Eu procuro fazer as melhores escolhas possíveis e, infelizmente, muitas das minhas escolhas não chegam a ser eleitas ou eleitos. Mas a cada eleição, busco conversar com minha família, com os amigos. Olhar e ouvir as nossas lideranças negras, é um trabalho de “formiguinha”, portanto, constante. Mas eu tenho esperança dessa política do “poder fazer”. Estar no poder público de ação política é um tipo de “poder fazer”, estar aqui e agora (dialogando) é um outro tipo de “poder fazer”, são oportunidades que temos para sermos ouvidos, de trocar com as pessoas, incluí-las e pensarmos juntos.

Debora. Infelizmente, a participação política por parte dos negros ainda é desigual, mas é importante levarmos essa representatividade para outros lugares. Os sistemas de cotas, por exemplo, são ações afirmativas que nos permitem acessar áreas de atuação e funções de alto status social, e não ocupar somente as vagas com baixa remuneração. Pense na representatividade causada em uma criança negra, ao ver um juiz negro na TV, como no caso do Joaquim Barbosa, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal. Afinal de contas, infelizmente, a imagem do negro ainda é muito associada ou às vítimas de racismo ou ao tráfico de drogas. E esse estereótipo é distorcido, não condiz com a realidade. É uma questão que precisamos desmistificar.

Maria. Apesar de falarmos das dificuldades e dores, eu tenho esperança. Para mim, o silêncio é muito mais danoso. Eu busco me inspirar nos quilombos, onde os negros compartilhavam e ouviam com atenção uns aos outros. Os quilombos eram tanto lugares de fuga quanto de luta, onde as pessoas construíam espaços de autogestão, de compartilhamento e de cuidados. Portanto, eu vejo neste processo de “se aquilombar” a oportunidade de nos inspirarmos em busca de liberdade e libertação. O autocuidado é necessário mais do que nunca, porque o povo negro precisa continuar sobrevivendo hoje para que daqui um tempo, quem sabe, outras gerações possam viver. E viver é muito mais do que sobreviver, mas, antes, precisamos sobreviver. E precisamos ajudar o outro a sobreviver.


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AUTORA

FVcomunica!

Revista Flash Vip, contando histórias desde 2003.
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